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No momento em que Shek Yeung viu o sabre do inimigo trespassar o seu marido, aprendeu duas coisas importantes sobre si mesma: a primeira, que amava Cheng Yat mais do que jamais imaginara ser capaz de amar o homem que, sem tomar em grande consideração os seus desejos, a raptara e a levara para o mar. A segunda, que não choraria a morte do marido.

A frota deles tinha passado o décimo mês lunar ali a fazer incursões ao largo da costa do Vietname, com as velas e os espíritos um pouco esfarrapados após a estação de tufões mais recente. Passavam navios mercantes pela zona, a caminho do imperador chinês, todos carregados de prata como a noiva de um nobre sob o seu toucado. O imperador necessitava de toda aquela prata, porque passara os últimos anos a reprimir rebeliões por todo o país. O tesouro imperial estava vazio. No entanto, ele tinha lançado recentemente uma campanha dispendiosa para acabar com a pirataria no delta do rio das Pérolas. Não que as novas leis tivessem causado qualquer impressão real nas mentes de pessoas como Shek Yeung e a sua tripulação, cujas vidas e mortes se pautavam pelos caprichos do mar. Já passavam fome muito antes de o imperador cobarde ter subido ao trono, e continuariam a passar fome se Cheng Yat não os tivesse arrebanhado como se fossem canas moles e não os tivesse juntado em feixes para os tornar como embarcações capazes de arrostar com tempestades. Por isso, sim, ela amara-o. Amara-o porque temia a morte.

Abrindo caminho até ao seu lado, acocorando-se instintivamente quando ouvia o ocasional estrondo do fogo de canhão, gritou para que Cheung Po viesse em seu auxílio. O rapaz rodou nos calcanhares quando ouviu a voz dela, desviando-se por pouco de um punhal na barriga. Não, ele já não era um rapaz. Ela ainda pensava nele como um rapaz, apesar de ele já ter vinte e cinco anos e
de ir em breve herdar a fortuna de Cheng Yat. O sorriso habitual de Cheung Po desvaneceu-se ao ver Cheng Yat esparramado no convés com uma faixa escura de sangue no tronco. Também ele adorava o homem, à sua maneira.

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Tudo tinha corrido muito mal, muito depressa. Tinham abordado o navio mercante português durante a noite. Se o navio estivesse cheio de prata para o imperador, poderiam contar com uma fortuna. Mesmo que só tivessem encontrado açúcar e pau-santo, teria sido um bom resultado. Alguns dos homens dela poderiam ter obtido o suficiente para alimentar as suas famílias durante todo o ano, poderiam ter regressado às suas casas mais para o interior até que a fome seguinte chegasse, o que sempre acontecia.

Mas os portugueses tinham vindo preparados para a guerra. O navio estava repleto de marinheiros da marinha portuguesa, todos treinados para enfrentar os navios piratas que enevoavam os portos do Mar do Sul da China, todos acordados apesar de ser noite cerrada, como que de sobreaviso. Talvez tivessem sido enviados diretamente pelo seu governo para proteger a rota comercial ou talvez trabalhassem como soldados da fortuna nos seus tempos livres. A Europa tinha quase de certeza a sua quota-parte de fomes. Ela ouvira dizer que um louco chamado Napoleão se fizera eleger primeiro imperador de França e estava a mover guerra a sete nações simultaneamente. Onde havia guerra, havia fome.

O estrangeiro que ferira Cheng Yat, lutando apesar do que parecia ser o ombro esquerdo deslocado, fendeu de alto a baixo mais um dos homens dela com o braço são e voltou a sua atenção para ela. O seu tamanho, por si só, tornava-o temível, e se ele tinha derrubado o comandante da temida Frota da Bandeira Vermelha, provavelmente a sua capacidade de luta era de primeira. Shek Yeung não tinha nada a ganhar lutando com ele corpo a corpo. Quanto a ela, a honra não era muito diferente da estupidez.

Ele arremessou -se sobre ela. Ela estendeu a mão para trás das costas, sacou da pistola de pederneira que guardava ali para emergências e segredou uma prece a Ma-Zou para que a pólvora negra não tivesse ficado molhada no caos.

Um estalido alto, e depois o cheiro a carvão e a enxofre encheu-lhe a boca como um pedaço de peixe podre queimado. O estrangeiro caiu de costas contra o balaústre. Sem saber se tinha desferido o golpe final ou simplesmente lhe roçara a pele, ela dirigiu-se ao homem e pontapeou-o para o mar. Não chegara aonde chegara na vida não sendo meticulosa.

Os números estavam do lado deles. A pirataria era, na maior parte das vezes, uma questão de convencer o alvo da inutilidade de ripostar. Provavelmente, a frota teria triunfado se tivesse continuado a batalha – mas o navio mercante incendiou-se. Um membro da tripulação dela podia ter ateado o fogo deliberadamente ou talvez alguém tivesse derrubado uma lâmpada.

– Retirar! – gritou ela. O fumo fez despontar espinhos dentro dos seus pulmões, reemergindo-lhe da boca como rosas cinzentas. A Cheung Po, disse: – Ajuda-me a levá-lo de volta para o navio.

De alguma forma, conseguiram fazê -lo, ajudados em parte pelo facto de os portugueses estarem preocupados com apagar o fogo. Quando ela ordenou a Binh que rumasse a Hainan, Cheng Yat puxou-lhe a manga.

– Cantão – disse ele.

– Isso é ridículo – disse ela. – Nunca conseguirás chegar aos médicos em Cantão.

– Não vou conseguir, de qualquer maneira.

Se a relação deles tivesse sido diferente do que era, Shek Yeung poderia ter tentado convencê-lo de que ele iria sobreviver àquilo,
como tinha sobrevivido a tantos outros ferimentos nos seus seis anos juntos. Mas ela era sua esposa, cativa, estratega-chefe e parceira em pé de igualdade. Os seus dias de murmúrios tranquilizadores vazios aos ouvidos de homens poderosos enquanto estes se encontravam nos seus braços tinham ficado para trás.

– Eu certifico-me de que a tua família recebe a notícia – disse.

Ele apertou-lhe a mão debilmente.

Depois de ter acabado de ajudar o resto da tripulação a sair do navio mercante, Cheung Po voltou a juntar-se aos dois. Ajoelhou-se, segurando o rosto de Cheng Yat com uma mão em concha. Por vezes, Shek Yeung esquecia-se de que o rapaz estava com Cheng Yat desde antes de ela ter vindo juntar-se à frota. Ela nunca se tinha dado ao trabalho de perguntar o que Cheung Po sentia exatamente pelo homem que o havia obrigado a servir como seu companheiro de navio e de cama. Não importava. Os tufões e as balas de canhão não se importavam com os sentimentos complicados, pequenos grous encolhidos, que batiam as suas asas no coração. O que importava era que Cheung Po lutava com ferocidade e lealdade. O que importava era que ele nunca tentara usar a sua intimidade com Cheng Yat para arrancar o poder a Shek Yeung.

Livro: “Profundo como o Céu, Vermelho como o Mar”

Autor: Rita Chang-Eppig

Editora: ASA

Data de Lançamento: 30 de abril de 2024

Preço: € 17,90

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– A aliança falhará se houver uma transição de poder brusca – disse Cheng Yat. – Tens de fazer tudo o que puderes para garantir o sucesso. Sem a aliança, não temos esperança contra as forças do imperador.

Pela manhã, ele estava morto. Shek Yeung e Cheung Po mantiveram-se de vigília junto ao seu leito, sem falarem um com o outro nem se olharem. Cheung Po tinha o pé sobre o joelho e mexia no punhal escondido dentro da bota, o que fazia com que
Shek Yeung sentisse dificuldade em prestar atenção a muito mais. Um a um, os oficiais do navio vieram prestar a sua homenagem: Binh, o timoneiro; o Velho Wong, o navegador, com os seus dedos artríticos agarrados ao mapa da rota como se ele fosse um livro sagrado; e Ahmad, o contramestre, que viajara de Malaca anos antes e nunca mais regressara. Por último, Yan-Yan, a comissária de bordo, com lágrimas a cair dos seus olhos da cor de nuvens de tempestade. Fazia sentido que a rapariga levasse a peito aquela perda. Como era jovem, Yan-Yan ainda não tinha perdido muitas pessoas chegadas, ainda não conhecia intimamente os contornos da dor do luto. Shek Yeung puxou-a gentilmente do lado do leito, onde ela estava sentada a chorar, e conduziu-a para fora da cabina. Os outros elementos da tripulação do convés estavam perfilados no corredor fora da cabina, de cabeça baixa. Alguns, especialmente os que Cheng Yat tinha forçado a juntar-se a ele, talvez se encontrassem ali apenas para se certificarem de que ele estava morto.

A viagem de regresso a Cantão foi rápida, apesar do vento de oeste. Nos primeiros dois dias, ela e Cheung Po quase não se falaram. Ambos, suspeitava ela, estavam preocupados com o que a morte do comandante significava para os seus futuros respetivos. Shek Yeung mantivera o controlo de metade da frota por ordem de Cheng Yat, e, enquanto ele foi vivo, ninguém se atrevera a questionar a autoridade dela. Cheung Po, por outro lado, era o «filho adotivo» de Cheng Yat e por conseguinte seu herdeiro legal. Essa fachada tinha sido necessária para garantir que, após a morte de Cheng Yat, a frota iria para um homem em quem ele confiava. E, embora Cheung Po não tivesse demonstrado nenhuma tendência especial para tomar o poder enquanto Cheng Yat era vivo, era difícil saber qual seria sua posição naquele momento. Hesitaria perante a insistência de Shek Yeung em
ficar com a sua metade? A situação tornar-se-ia sangrenta?

Um sol desconfiado aguardava por trás das nuvens, conferindo à tarde uma sensação inquietante. As ondas faziam flexões e alongamentos, empurrando o navio. À distância, as raias -manta rompiam a água e voavam valentemente pelo ar, mas voltavam a tombar inevitavelmente nas profundezas cinzentas. Os que ao mar pertenciam, o mar nunca libertava.

Em criança, ela olhava para as ondas e via apenas liberdade. Como adulta, sabia que nada era assim tão simples. Por cada medida de liberdade que o mar dava, tirava uma. Aos olhos da lei, ela era uma criminosa, agora e para sempre. Não importava que Cheng Yat a tivesse coagido a alistar-se. Ela acabara por aceitar aquele navio como o seu novo lar. O junco O Yam, batizado com o nome do dragão vermelho do Mar do Sul da China, era o maior e o mais robusto da frota. Com os seus três mastros majestosos e as suas velas ao terço vermelho-vivas, o O Yam tinha testemunhado o nascimento dos seus dois filhos e a morte de outros dois, um ainda no ventre e o outro à chegada, azul como sangraria o oceano se fosse cortado. Ela e Cheng Yat tinham devolvido essa criança às ondas, onde claramente pertencia.

Se Cheung Po discordasse da sua posição, se entrassem em conflito e ele ganhasse, o resultado mais benévolo seria o exílio. E depois? De volta àqueles «barcos de flores» cheios de humidade, de volta àqueles homens bêbedos com mãos pesadas que levantavam ao menor desagrado? A ideia de ter de deixar para trás a sua vida no mar confundia-a quase tanto como a assustava.

– Prometeste-me uma vida – disse ela a Ma-Zou. O mar não respondeu.

Ao anoitecer, Yan Yan veio à cabina dela. O seu rosto já estava seco, mas as marcas das lágrimas ainda eram visíveis. Shek Yeung
trouxera Yan-Yan para bordo há três anos, depois de ter apanhado a rapariga a fazer batota num jogo de pai gow num antro de jogo em Macau. Yan-Yan era a única mulher em todo o navio – para além de Shek Yeung – que não estava a servir ou a acompanhar os homens, pelo que, naturalmente, se destacava. Shek Yeung tinha visto, intrigada, até mesmo encantada, Yan-Yan ganhar jogo após jogo, ao mesmo tempo que se esquivava timidamente dos homens que exigiam a sua atenção. Shek Yeung não podia deixar de se lembrar de si mesma em mais nova, a que tinha conquistado o respeito de todos os pescadores com o seu talento e a sua garra. Que aquela rapariga minúscula tinha talento (e uma dose considerável de coragem) era evidente, mas o talento só a levaria até certo ponto no submundo. Teria sido apenas uma questão de tempo até um daqueles homens decidir que estava farto de perder para uma mulher ou de lhe ver negado o afeto dela. O resultado teria sido terrível, e terrivelmente familiar para Shek Yeung.

Em vez de a denunciar ao patrão do antro, Shek Yeung chamou-a à parte depois de um jogo.

– Rapariga, és boa com números?

– Nós entendemo-nos – respondeu Yan-Yan, com uma expressão altiva. Era a altivez da juventude, mas também da habilidade
genuína. A própria Shek Yeung usara essa expressão em tempos, antes dos barcos de flores.

– Então nós podemos entender-nos – disse Shek Yeung.

Yan-Yan fugira de casa depois de a terem casado com um homem rico com «apetites exóticos», que desenvolvera uma obsessão por ela devido aos seus olhos cinzentos. Para se sustentar, ela começara a frequentar salões de pai gow, contando com as suas capacidades para aumentar os seus fundos, ou seja, os taéis de prata que roubara ao homem rico e as jóias de casamento que tinha penhorado. Mas o que ela possuía em sensibilidade para os números faltava-lhe em conhecimento do submundo. Apenas a sorte e uma certa dose de autocontrolo (levantava o dinheiro imediatamente após pequenos ganhos) lhe tinham evitado uma morte prematura.

Nos anos desde que se integrara na frota, Yan-Yan tornou-se indispensável, não só por causa das suas funções, que desempenhava de facto muito bem, mas também por causa da sua tagarelice. Conversava com as pessoas quando elas se sentiam tristes, quando se sentiam empolgadas, quando talvez desejassem que ela não fosse tão tagarela. Mesmo assim, havia algo de reconfortante na tagarelice para Shek Yeung, que vivera a primeira metade da sua vida rodeada de mexericos e de conselhos não solicitados de outras mulheres. Alguns meses antes, Yan-Yan virara a maior parte da sua atenção para um dos membros mais recentes da tripulação, uma mulher alta e enxuta do norte da China que era pelo menos cinco anos mais velha do que Shek Yeung. De longe, as duas pareciam mais mãe e filha do que potenciais amantes. Shek Yeung ouvia-as muitas vezes a falar até altas horas da noite no seu característico pidgin de cantonês e dialeto do Norte.

Fez um gesto a Yan-Yan para que entrasse na cabina. A rapariga tombou no chão a seus pés, balançando as pernas para um lado e parcialmente atrás das ancas, como uma cauda de gato. Apoiou o queixo pontiagudo nas costas da mão, que pousou no joelho de
Shek Yeung.

– Grande Irmã, eu e alguns dos outros estávamos a conversar, e estávamos a pensar se... – começou Yan-Yan.

– Não sei – disse Shek Yeung, interrompendo-a.

– Mas achas que ele vai tentar? – perguntou Yan-Yan.

Tinha razão em se sentir preocupada. Se Cheung Po ganhasse, seria insensato se não matasse a tripulação mais aliada com Shek Yeung. Decididamente, isso significava Yan-Yan. Ahmad, que Shek Yeung também recrutara pessoalmente, talvez estivesse em perigo. Binh, provavelmente, estava a salvo, porque já fornecia mantimentos à frota muito antes de Shek Yeung se ter juntado a ela – Cheng Yat tinha-lhe dado as boas-vindas a bordo quando os rebeldes Tay Son no Vietname foram finalmente derrotados. O Velho Wong era... o Velho Wong. Ninguém conhecia aquelas águas melhor do que ele.

Shek Yeung suspirou.

– Não seria racional. Qualquer luta interna iria enfraquecê-lo o suficiente para o tornar um alvo para os comandantes das outras frotas, mesmo que ele conseguisse vencer. Mas a ganância leva os homens a fazer coisas estranhas.

– Eu não sei o que faria se tivesse de fugir outra vez – disse Yan-Yan, com um ar abatido. – Sabias que o meu pai usou o meu preço de noiva para tentar que os meus outros pretendentes pagassem mais? Era como se eu fosse uma porca que ele estava a leiloar.

Ela fez uma festa na cabeça da rapariga.

– Eu certificar-me-ia de que ficas em segurança – disse, embora não estivesse realmente em posição de prometer fosse o que fosse. Mas Yan-Yan parecia muito preocupada. O maior medo da rapariga, além da morte, talvez fosse ter de regressar a casa para ser a quarta mulher (ou o que quer que fosse) do seu noivo.

Por vezes, Shek Yeung perguntava -se o que teria acontecido se os seus pais tivessem sobrevivido. Como eles também não eram ricos, talvez ela tivesse tido um destino semelhante. Um marido bondoso teria significado grilhões de seda; um cruel, bem, quem sabia? De qualquer forma, ela poderia ter acabado por fugir para o mar. As histórias de vida das mulheres eram escritas pelos seus homens, de forma confusa, elegante ou, no caso de homens violentos, concisa. Agora que Cheng Yat estava morto, Shek Yeung tinha finalmente a oportunidade de ditar o curso das coisas. Podia ter nascido há trinta e um anos, mas a sua história só nesse momento passara a ser sua.

Depois de a rapariga ter saído, Shek Yeung puxou um banco para junto do corpo de Cheng Yat e sentou-se, como se estivessem
a preparar-se para ter uma conversa. Costumavam fazer isso a toda a hora nos primeiros tempos do casamento, embora normalmente fosse ele quem a procurava. «Quero a tua opinião sobre uma coisa», dizia ele, e ela ficava a transbordar como um brinde de casamento, tão jubilosa, tão grata, por haver um homem que lhe dava valor pelos seus pensamentos.

Mas naquele momento não sabia o que dizer. De que valiam os seus pensamentos?

Morto, Cheng Yat parecia mais um tio simpático do que o homem que tinha dizimado as legiões do imperador anterior e levado o imperador atual à beira da ruína financeira. As suas sobrancelhas grossas e pontiagudas e as rugas ascendentes nos cantos dos olhos davam-lhe uma aparência de perpétuo divertimento. A única coisa que o denunciava era a cicatriz de navalha na face esquerda.

Ela arregaçou-lhe as mangas para contar as cicatrizes. Havia muitas mais do que quando se tinham conhecido, sete anos antes. Aquela era do ataque de um pirata de uma frota rival há cinco anos, antes da aliança. O homem poderia ter conseguido matar Cheng Yat se Shek Yeung não o tivesse trespassado pelas costas. Aquela outra tinha vindo de um oficial da marinha cheio de perícia, há três anos, pouco depois da aliança e também do nascimento do seu segundo filho. No seu estado de fraqueza, não tinha sido capaz de se defender. Mas Cheng Yat interviera a tempo. Ele sempre fizera tudo o que estava ao seu alcance para a manter viva, embora, claro, eles nem sequer estivessem a lutar contra o oficial da marinha se Cheng Yat não tivesse insistido em assaltar o navio imperial antes de Shek Yeung ter recuperado totalmente.

Aquela última viera da própria Shek Yeung apenas meses antes. Encontravam -se em plena batalha, e ela confundira-o com um inimigo. Durante algum tempo, abundaram os rumores de que ela o ferira deliberadamente. Ela nunca os desmentiu. Sabia que não seria capaz de convencer ninguém se nem sequer se conseguia convencer completamente a si própria.

Também nela havia uma série de cicatrizes, algumas deixadas por inimigos, outras por Cheng Yat. Não admirava que não tivesse palavras. Aquele homem tinha ao mesmo tempo salvado e destruído a sua vida.

Por um momento, pensou que poderia chorar, mas não o fez.