"Nunca conheças os teus ídolos", costuma dizer-se. O pessimismo da frase tem o seu fundo de razão, já que o choque de descobrirmos que as figuras que mitificámos são tão humanas quanto nós — nas suas virtudes e vícios — pode tirar-nos o tapete de baixo dos pés, abalar crenças que outrora julgámos inamovíveis. Talvez o mais sensato seja não ceder à idolatria, mas isso é algo tão difícil quanto contrário à nossa essência.

Os três jornalistas no cerne de "Os Memoráveis", de Lídia Jorge, passam por semelhante experiência. Encarregados de fazer um documentário junto das figuras principais do 25 de Abril de 1974, deparam-se com homens e mulheres despojados da patine mítica que o tempo e a cultura popular trataram de cobri-los.

“Eles vão fazer uma espécie de mergulho naquilo que é a história e, portanto, desconhecem aquilo que foram os sentimentos pessoais e a vida destas figuras, que eu não quis que aparecessem como heróis, apenas como memoráveis. (…) Mas encontram-se com figuras comuns, isto é, figuras que tiveram problemas, desentendimentos, dissensões, que foram vítimas, que foram algozes. Figuras na sua inteireza, redondas como na vida. E, por isso, eles apenas são memoráveis porque devem fazer parte da memória, de um património da memória”, diz ao SAPO24 no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".

Uma das maiores figuras da cultura nacional, a escritora de 77 anos conta com um sem-número de distinções — a mais recente foi o Prémio Médicis, em 2023, por "Misericórdia" — e um extenso corpo literário, variando principalmente entre o romance e o conto. Publicada 34 anos após a sua obra de estreia — "O Dia dos Prodígios", também ele um livro engajado com a reflexão sobre o 25 de Abril —, "Os Memoráveis" é uma obra que Lídia Jorge assume frontalmente ter sido escrita "para os jovens" do nosso país.

É por isso que Ana Maria Machado — a jovem jornalista portuguesa a trabalhar na emissora norte-americana CBS e que nem queria fazer o dito documentário — e os seus dois ex-colegas de curso, Margarida Lota e Miguel Ângelo, vão à procura dos protagonistas do 25 de Abril: para estar perante a história da Revolução, sem medo de pisar as armadilhas deixadas por décadas de memórias contraditórias, de "Charlie 8" (Salgueiro Maia) a "El Campeador" (Otelo Saraiva de Carvalho).

"Os Memoráveis" foi concebido como esse exercício de aproximação ao legado da Revolução e Lídia Jorge crê ser necessário recordar o que mais luminoso o 25 de Abril nos deixou. "Os regimes autocráticos estão a organizar-se e estão a captar os jovens que não sabem o que é a liberdade, não sabem o logro que é a política de natureza messiânica. Os jovens não sabem isso e eu compreendo, eles querem uma coisa nova, alguma coisa que retire a imperfeição da democracia", alerta.

No entanto, a escritora também acredita que os 50 anos da Revolução estão a permitir gerar uma nova consciência quanto ao estado em que Portugal se encontra e como deve navegar os anos que se seguem. "Tenho a ideia de que este movimento é de clarificação, de que tem um valor importante e que há de novo uma outra utopia no ar. Ela não é uma utopia radiosa como aconteceu no verdadeiro 25 de Abril, quando se queria quebrar uma ditadura. Não precisamos hoje disso. Acho que há uma utopia controlada, uma utopia consciente, uma utopia em que a parte emotiva é menos forte do que a parte racional"

“Os Memoráveis” parte de fora do 25 de Abril para o seu profundo âmago, colocando três jovens jornalistas nascidos depois da revolução a entrevistar alguns dos seus mais importantes protagonistas. Que exercício procurou fazer com este diálogo?

Quis surpreender, na medida do possível, quanto à avaliação que as novas gerações podem fazer sobre o que aconteceu em 1974. E pareceu-me que era uma forma que literariamente iria resultar, porque era o encontro entre um olhar inocente sobre aquilo que ocorreu e, ao mesmo tempo, esse olhar cruzar-se com estas figuras que esses jovens pensam já não fazer parte deste mundo. E, portanto, essas figuras aparecem para os jovens como que ou mortas ou ressuscitadas. E a ideia que eles têm é de que houve uma narrativa que não tem a ver com a narrativa baça que tinham ouvido. É uma forma de reviver, no âmago humano e não histórico, aquilo que se passou, nessa altura, 40 anos atrás.

É curioso referir que os três jornalistas partem de forma inocente, porque, contrariando-a um pouco, nunca há total inocência quando olhamos para um evento como o 25 de Abril, não é? Aliás, os três têm perspetivas um pouco distintas em relação ao próprio acontecimento. É sequer possível encararmos de forma absolutamente imparcial um acontecimento como o 25 de Abril?

Não, eles têm todo o seu preconceito. Digo "inocente" porque eles estão de boa fé e, portanto, têm a capacidade de escuta. É por isso que ouvem relatos que até são contraditórios entre si. Eles têm essa capacidade de audição, de adesão àquilo que está a acontecer. Portanto, em vez de rejeitarem, de desprezarem, têm a paciência para ouvir e para interpretar aquilo que lhes é relatado. Eles vão fazer uma espécie de mergulho naquilo que é a história e, portanto, desconhecem aquilo que foram os sentimentos pessoais e a vida destas figuras, que eu não quis que aparecessem como heróis, apenas como memoráveis. Isto é, não são como os heróis gregos, figuras intocáveis, que têm uma dimensão metafísica. Pelo contrário, vão ao encontro de figuras de carne e osso que participaram de uma maneira invulgar durante 24 horas em que tudo correu bem. Mas encontram-se com figuras comuns, isto é, figuras que tiveram problemas, desentendimentos, dissensões, que foram vítimas, que foram algozes. Figuras na sua inteireza, redondas como na vida. E, por isso, eles apenas são memoráveis porque devem fazer parte da memória, de um património da memória. Para mim foi muito importante esse olhar de quem não sabe, de quem tem preconceito mas não tem sabedoria, e que vai ao encontro dela com humildade, que é o que acontece com esses três jovens.

Quanto à questão da memória que abordou, a estrutura do romance encara o 25 de Abril quase como uma fábula e o facto de os seus intervenientes reais serem retratados com nomes ficcionais parece materializar um pouco esse projeto. Lembrar a história passa inevitavelmente por enfabulá-la?

A história é uma coisa e a literatura é outra. A história procura uma verdade que se aproxima do real, procura captar o mais possível a realidade. O que acontece é que a ficção utiliza a mitologia, isto é, a transfiguração, para ir à procura daquilo que é verdadeiramente o coração da fábula. E é por isso que a segunda parte [de "Os Memoráveis"] é o caminhar para o coração da fábula. E isso é o que acontece sempre, porque a história petrifica tanto aquilo que são as verdades que são encontradas como, ao mesmo tempo, as mentiras que a própria realidade vai criando. Isto é, a história também vive de relatos que muitas vezes omitem a verdadeira realidade. Interpreta números que não têm a ver com o que aconteceu. Ora bem, o que faz a ficção? É como se desistisse desse papel de recolha da verdade para procurar uma outra verdade, para procurar o que sobeja daí em termos de sentimento. Foi isso que procurei fazer.

Devo dizer-lhe já agora — sem querer, enfim, glorificar-me, porque não é nada disso — que tenho o gosto de saber que, sendo uma fábula que eu criei, uma mitologia, tive o cuidado de trabalhar com elementos da história, com elementos reais colhidos dos testemunhos diretos e dos relatos fidedignos. E tenho o gosto de que os historiadores me digam que não há um erro histórico aqui. Designadamente, o Yves Léonard, que é um historiador que tem uma certa distância em relação a nós porque não é português — e mesmo vários portugueses me o têm dito —, mas ele diz "não, não encontrei uma falsidade. Encontro uma fantasia, mas não uma falsidade". Isso dá-me algum conforto, de perceber que não estou a enganar ninguém, não é? E eu escrevi este livro com um destinatário, ao contrário dos outros meus livros. Foi escrito para os jovens do nosso país. Foi escrito há 10 anos e não tenho nada a acrescentar. Parece-me que poderia tê-lo escrito hoje que não escreveria nem mais nem menos.

"Creio que ultrapassámos essa petrificação, essa metáfora morta em que se tinha transformado o 25 de Abril"

Estava a perguntar-lhe se lembrar a história é inevitavelmente por enfabulá-la porque — e até colocando a conversa no tempo atual, quando se fala tanto da memória histórica e do combate da memória — nunca há uma história monolítica, não é? Há formas diferentes de encarar a história ou de ler os mesmos factos.

A Agustina [Bessa-Luís] tinha uma fórmula muito interessante, ela dizia que "a história é uma ficção controlada". E de facto é assim, é também uma ficção, com o controlo de uma certa realidade. E hoje, 50 anos depois, acho que se está a viver um momento muito importante entre nós. Porque houve uma fase, sobretudo nos anos 90, em que o 25 de Abril tinha deixado de ter uma razão, tinha deixado de ser admirado. Foi a altura, depois da queda do muro de Berlim, em que se começou a pensar que os objetos tinham a sua alma, que a sua troca, o comércio, nos conduziria a uma fraternidade global. Dramática e tragicamente, hoje sabemos que isso foi um erro. O que acontece é que nessa altura a utopia em que tinha consistido a revolução aparecia como alguma coisa arcaica, banal, que já tinha acontecido e que tinha acontecido mal, dizia-se. Porque não era preciso uma revolução, afinal bastaria uma simples evolução. Não era assim, havia um erro, um logro, passado estes anos todos. Porque, na verdade, a revolução portuguesa partilhou daquilo que se chama o grande movimento de democratização do último quartel do século XX. A partir de 2001, com a queda das Torres Gémeas, percebeu-se que o mundo ia ser diferente. E o que nós estamos a assistir é o contrário [desse movimento], é uma antidemocratização das sociedades.

Hoje creio que Portugal percebe com muita violência aquilo que está a acontecer. Os regimes autocráticos estão a organizar-se e estão a captar os jovens que não sabem o que é a liberdade, não sabem o logro que é a política de natureza messiânica. Os jovens não sabem isso e eu compreendo, eles querem uma coisa nova, alguma coisa que retire a imperfeição da democracia. Mas ela não é adquirida com regimes messiânicos nem de um homem só. Ela é adquirida com a liberdade, com o diálogo permanente entre diferentes, para depois se fazer o consenso — esta dificuldade é a mais-valia das democracias. E aquilo que está a acontecer é o derrube dos consensos e das alianças.

Mas o movimento que está a acontecer hoje em Portugal em torno do 25 de Abril é lindo, na minha perspetiva. Porque eu vejo as livrarias, os palcos, as escolas, as universidades, as instituições, os jornalistas, todos empenhados em falar daquilo que aconteceu há 50 anos. E eu tenho a ideia de que este movimento é de clarificação, de que tem um valor importante e que há de novo uma outra utopia no ar. Ela não é uma utopia radiosa como aconteceu no verdadeiro 25 de Abril, quando se queria quebrar uma ditadura. Não precisamos hoje disso. Acho que há uma utopia controlada, uma utopia consciente, uma utopia em que a parte emotiva é menos forte do que a parte racional. E nesse domínio, penso que este é um momento de facto muito importante que estamos a atravessar e ainda bem que pessoas — como está a acontecer consigo — estão a valorizar e a dar voz aos livros que falam dela.

Relativamente a esse sentimento do fim da história nos anos 90, a personagem principal, Ana Maria Machado, tem um aspeto muito interessante. Ela parece sentir os sintomas de uma geração que passou a encarar o 25 de Abril como um museu. Parece ter havido um excesso de memorialização que criou enfado. Acha então que estamos a conseguir ultrapassar esse estado?

Evidentemente que nenhum destes movimentos é homogéneo, e portanto haverá com certeza uma parte [da população que não]. Agora, eu acho que há uma vivacidade tão grande que sim, creio que ultrapassámos essa petrificação, essa metáfora morta em que se tinha transformado o 25 de Abril.

Regressando ao livro, há uma mágoa presente nas vozes de vários dos intervenientes entrevistados, desde encarar o 25 de Abril como um projeto inacabado até considerar que a sua memória foi deturpada ou esquecida. Por todas as virtudes que a Revolução nos trouxe, que traumas é que nos falta resolver?

Bem, entre nós acho que é o trauma da pobreza que falta resolver. Porque temos liberdade, temos instituições que funcionam, algumas delas de forma imperfeita, mas com a possibilidade de correção, o que é muito bom. E fazemos hoje parte de um bloco importante, o bloco europeu. Nós conseguimos muito — o que não conseguimos foi, de facto, a nível do desenvolvimento, arrancar uma enorme faixa da população dos níveis de pobreza. Isso é um perigo enorme em face dos desafios atuais e sobretudo falta dar essa felicidade, esse upgrade às populações que ainda está por fazer. É no domínio do desenvolvimento que ainda não cumprimos.

"A história luminosa é sempre muito passageira, é sempre muito rápida. É sempre algo que, mal acontece, o perigo de se sujar é iminente. Isso faz parte da natureza humana."

A protagonista de "Os Memoráveis" é impelida a fazer o documentário que está no cerne da narrativa por um embaixador estrangeiro que tomou parte no pós-25 de Abril e que lhe pede que traga "uma narrativa luminosa", da qual "uma pessoa se reveja". Mas, se dependesse dela, não o teria feito, teve de ser convencida. Isso denota também uma certa dificuldade que temos em olhar para nós próprios?

Sim, sem dúvida, temos dificuldades, mas eu tenho ideia que é próprio de todos os países. Quando nós falamos com as pessoas do próprio país há uma espécie de hipersensibilidade àquilo que ocorre nele e é preciso afastarmo-nos para fazermos um balanço mais claro. Para mim é absolutamente espantoso, por vezes, ver que as pessoas chegam aqui e valorizam aquilo que nós não estamos a valorizar. Aliás, a fábula deste livro constitui parte, precisamente, da encomenda que é feita a cinco jovens, cinco jornalistas dos vários países da Europa que estão em Washington e há um antigo embaixador que lhes diz "vocês, nos vossos países, tiveram momentos únicos de mudança. Vão lá e tentem encontrar na história dos vossos países um momento para nós fazermos aquilo que se chama a história acordada, a história luminosa". E eles vão e percebem uma coisa: a história luminosa é sempre muito passageira, é sempre muito rápida. É sempre algo que, mal acontece, o perigo de se sujar é iminente. Isso faz parte da natureza humana.

Os Memoráveis
créditos: Dom Quixote

Aliás, é por isso que, adiantando um pouco o tema, este livro, precisamente, criou dois movimentos diferentes em torno dele. O movimento dos Abrilistas, daqueles que só veem a parte brilhante em Abril — e isso constitui um grande grupo de militares que viram nele [no romance] que eu sublinhava a deceção. E, pelo contrário, as outras pessoas que não prezam o 25 de Abril e que acham que eu elogiei demasiado a Revolução. Acho que o livro fica a meio caminho. Tal como a história o mostra, é um livro onde há coincidências extraordinariamente positivas ao longo de 24 horas no nosso país. E ver isso do ponto de vista histórico é das coisas mais curiosas a que eu tenho tido acesso — como é que acontece que, durante 24 horas, todos os percalços tenham resultado em vitórias, em pequenas vitórias que depois resultaram naquilo que foi a revolução?

Para mim, foi também muito importante falar disso e mostrar como dentro dessas 24 horas já existe o sintoma daquilo que será a desinteligência e que fará com que um Charlie 8 — aquele que representa o mais brilhante, o mais corajoso ou que teve oportunidade de mostrar essa coragem de entre os cerca de 5 mil jovens — tenha sido tratado como foi pelo Estado português. E outros. Houve várias figuras fundamentais como foi, por exemplo, o caso de José Afonso, que viria a morrer passado algum tempo e que foi amparado pelos seus amigos mas o Estado, nada. Houve uma incapacidade na altura de se perceber que aquelas pessoas eram mitos, tinham ultrapassado a mediania e que era preciso respeitá-los. Hoje em dia já não seria assim: se eles tivessem sobrevivido, eu acho que teriam sido acarinhados de outra forma e reconhecidos de outra maneira.

Talvez afastando-nos um pouco do tema, essa questão do destratar figuras importantes traz à memória os 500 anos do nascimento de Luís de Camões — há esse paralelo.

Se há alguma coisa que pode caracterizar a nossa atividade, a nossa forma de ser, é sermos demasiado indolentes. Não estou em crer que este descuido que houve com as comemorações de Camões tenha sido uma coisa...

Orquestrada?

Sim, ou uma coisa preparada. Não, é um empurrar com a barriga, é o "depois acontecerá", "haverá outro momento". Isto caracteriza-nos em tudo. Aguardamos demasiado tempo, não temos o sentido da urgência. Isto é um mal, não é? E aí, nesse caso, foi muito notório espero que seja recompensado e que vá para diante rapidamente e bem.

"passámos de uma geração de analfabetos para netos doutorados. Isso foi feito em famílias que fizeram esforços muito grandes, não só financeiros, mas de adaptação a novos mundos"

Assumiu aquando o lançamento de “Os Memoráveis” que, entre outros desígnios, o livro procurou responder a “Dia dos Prodígios”, editado 34 anos antes e que também se debruça sobre o 25 de Abril. Que balanço faz desse encontro? 

Sabe, é... curioso, e não sei como é que isto me aconteceu. Tenho dois romances sobre esta data. De facto, é uma data central na minha geração — não é para a vossa, sem dúvida, mas para a nossa foi absolutamente central, porque a vimos nascer. Vimos esta data aparecer a pouco e pouco durante um ano. Percebia-se que ia acontecer alguma coisa, não sabíamos como. E mudou as nossas vidas, mudou a sociedade, o papel das mulheres, a visão do mundo que os portugueses tinham sobre si — geopoliticamente passámos a colocar-nos de uma outra forma. Foi uma mudança radical: o código civil tornou-se outro, passou de arcaico e medieval para moderno e europeu. A nossa vida passou a ser outra, o mundo, a escola, a universidade — tudo se modificou a partir daí. Portanto, é natural que isto nos tenha tocado. Além disso, houve uma outra coisa. A nossa revolução tem toda uma mitologia visual e sonora que é extraordinária e que toca muito.

Então, o meu primeiro livro... Olhe, o meu primeiro livro foi escrito precisamente com inocência. Não fazia ideia do que era publicar um livro, mas quis escrever sobre uma população antiga, rural, que vivia como na Idade Média, na dependência de mitologias arcaicas, com a crença em seres maravilhosos, na divina providência, nos santos, em cobras voadoras que significavam coisas. Eu quis falar desse ambiente e mostrar o desencontro que havia entre esse mundo mágico antigo e aquilo que era a promessa de uma mudança de civilização do futuro. Escrevi esse livro como uma espécie de longo poema dito em voz alta. É um livro difícil, eu sei, mas é o meu livro mais puro, não há dúvida nenhuma, porque escrevi-o sem noção de destinatário nem de editor nem de crítica nem sequer de leitor. Escrevi com a ideia de manter o testemunho sobre aquele tempo — e a minha surpresa foi, quando ele foi publicado em 1980, as pessoas terem escrito, e foram muitas, que era um livro sobre a nossa mentalidade profunda. Isto é, era um livro sobre a nossa força em sonhar e a nossa incapacidade no agir, a nossa fraqueza e debilidade no agir. Apareceram textos escritos que diziam "Lídia Jorge escreveu um livro sobre o 25 de Abril" e eu fiquei surpreendida porque tinha pensado nisso mas achava que tinha escrito um livro de outra natureza — que isso quase não se notaria. "O Dia dos Prodígios" é um livro escrito a partir da terra, a partir de uma aldeia profunda, visto a partir das pessoas que traziam o mundo arcaico, de uma aldeia onde cada merceeiro tinha duas balanças: uma balança para comprar, outra para vender. Em resumo, era um outro mundo.

Passados todos esses anos, quis escrever um livro diferente sobre o mesmo tema. Aí ele não parte mais do terrunho e de uma aldeia escondida entre árvores; parte de fora, da imigração — não a económica, mas a imigração intelectual e profissional, de um outro nível. É o mesmo movimento mas agora visto com os olhos dos jovens portugueses que entretanto são filhos e netos daqueles que foram retratados em 1974. Portanto, tenho esses dois livros com dois pontos de vista completamente diferentes e também duas escritas muito distintas, porque uma ["O Dia dos Prodígios"] é uma escrita bíblica, é um poema longo, com vozes que se cruzam como se fosse no teatro grego. Este ["Os Memoráveis"] é como uma montagem cinematográfica em que se mostra três planos diferentes do mesmo guião.

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Refere a sua surpresa de ao longo da carreira ter escrito dois livros que visavam particularmente o 25 de Abril. Apesar de serem várias as obras publicadas nos últimos 50 anos a abordar o tema, arrisco-me a dizer que, dada a importância histórica deste acontecimento, é um número que peca relativamente por escasso. É um tema difícil de abordar pelos alguns riscos de cair num certo didatismo ou numa tendência panfletária ou há outra explicação?

A minha explicação é outra, porque acho que isso não atormenta os escritores, eu não fui atormentada. Quando nós queremos, nós transfiguramos as coisas. Penso que, entretanto, surgiram também outros temas absolutamente candentes na nossa vida, porque entretanto apareceu a evolução da nossa sociedade. Foi muito forte, nós passámos de uma geração de analfabetos para netos doutorados. Isso foi feito em famílias que fizeram esforços muito grandes, não só financeiros, mas de adaptação a novos mundos. Nós procurámos ser modernos e pós-modernos num mundo ao qual vínhamos arcaicos e com um grande peso de analfabetos. Quero dizer, isto foi uma transformação gigantesca que trouxe dificuldades. Entretanto o mundo alterou-se, tem havido sucessivos desafios à Europa, de natureza, por exemplo, tecnológica, a adaptação a um mundo novo. Também as pessoas deixaram de ter aquela visão muito agarrada a uma vida sedentária, toda a gente passou a viajar, as pessoas passaram a ser "nómadas". Os jovens, sobretudo, conhecem o mundo todo. A noção de saudade, por exemplo, que é uma coisa muito portuguesa, praticamente desapareceu como tema porque aquilo que fazia de nós um povo saudosista, pela distância de uma parte da população que se esfumava no mundo longínquo, de repente acabou. A saudade deixa de ser um tema geográfico, um tema vital para os portugueses. Portanto, há aqui uma substituição de temas e passámos a ter a originalidade de sermos um país com uma raiz ainda de grandes níveis de atraso e outros de intensa modernidade. Naturalmente os desafios passaram a ser outros e eu diria que há todo um envolvimento literário de outros temas que compreendo que se sobrepõem a este.

"Neste momento, a vossa luta e a dos vossos filhos é uma luta muito mais drástica do que foi a nossa"

O 25 de Abril e o PREC que lhe seguiu foram alimentados por um projeto de futuro — aliás, de futuros, vários deles incompatíveis. Hoje mantém-se a pluralidade de posições, mas nem por isso parece haver esperança no amanhã. Porquê?

Acha que não há esse gérmen de esperança no amanhã?

Falou há pouco de um projeto novo, mas não parece haver as utopias de antes.

Esta é a minha opinião, mas faço parte de uma geração que não se tornou uma geração cínica, compreende? Porque nós percebemos que, quando há necessidade de mudar, pode-se mudar. E isso é uma espécie de ADN da minha geração. Eu tinha 26 anos, acho eu, quando se dá a Revolução. É a plena juventude, e percebi o que era não ter liberdade — sobretudo para as mulheres, o que era as pessoas quererem ser livres e não conseguirem, o que era tentar ter acesso a determinadas profissões e não se conseguir. Assistir a essa mudança de estatuto foi algo que disse à minha geração "se tu queres, tu podes". Isso não acontece à geração dos meus filhos. Eles olham para trás e o que é que leem, sobretudo? Que no meio do mundo que lhes deu a liberdade, leem sobretudo a impureza da democracia, estão permanentemente em confronto, com uma espécie de desconsolo. E a resposta ao desconsolo é a ironia, é uma espécie de cinismo. É dizer "eu não vou lá, nada disto acontece, nada disto vai prestar". E isto é ondulatório nas sociedades. Acho que são os vossos filhos que irão ter outra vez outra noção de utopia. Aliás, ela está a nascer na base de alguma coisa que a minha geração não imaginava, que é em torno da salvação da Terra. Nunca na minha vida imaginei, quando tinha 17 ou 18 anos, que a salvação da Terra era uma utopia — e neste momento é-o de facto, manter a Terra azul, mantê-la habitada por homens. Manter a humanidade viva é hoje um confronto diário que temos. Enquanto estamos a falar aqui, perguntamos se de facto a humanidade vai manter-se viva. Isso é a vossa utopia, não é?

Vocês têm um mundo que creio ser muito mais cruel — do ponto de vista ideológico, do ponto de vista das crenças — do que o nosso. Nós acreditávamos na metafísica, na bondade humana, que as mulheres viriam trazer uma nova ética e que, ao trazê-la, haveria uma salvação no mundo; hoje sabemos que as mulheres não trazem, ou ainda não trouxeram, apesar de tudo, essa diferença. As mulheres comportam-se nesse plano como os homens. Agora percebemos bem que somos a mesma humanidade. Nós íamos impelidos por crenças, vocês caíram aos vossos pés. Eu hoje encontro meninos de 14 anos que não acreditam em Deus, não acreditam em qualquer coisa relacionada com a metafísica, que acham que nós somos como uma espécie qualquer como os dinossauros com os quais brincaram em pequeninos e que desapareceram — ou seja, somos uma espécie para extinguir. São meninos que têm a noção de que a Terra é uma bolinha pequeníssima no meio do Universo e que não vale de nada. E eu, perante tudo isto, não me admiro que se batam uns aos outros, que façam bullying, que se matem uns aos outros, percebe? Porque não há nada que os conforte; por vezes o único conforto são os braços da mãe e do pai.

Fala de um desenraizamento geral.

Um desenraizamento e uma perda de referências protetoras. Nada os protege, tudo é fragilizado à sua volta. Neste momento, a vossa luta e a dos vossos filhos é uma luta muito mais drástica do que foi a nossa; a nossa era pelo bem-estar, pela liberdade, por sermos livres, por esta coisa simples que a mim me movia que era votar. Votar, para mim, era um ideal: quando votei, senti-me uma rainha. Hoje nada disso é importante para os jovens, hoje o questionamento é muito mais radical. É sobre a existência humana, ela própria, no meio da criação.

Talvez seja demasiado exigente perguntar-lhe qual é a solução para tudo isto, portanto vou recorrer a uma frase que escreve no romance quando o embaixador pede a Ana Maria Machado para fazer o documentário e diz "eles andam aí a dizer o contrário, mas olha que mais importante que a verdade é a beleza". Esse é o ideal capaz de impelir-nos para um sítio melhor?

Sim, acho que escolheu bem. Diria mesmo que essa frase é o que me sustenta. É por isso que a arte é fundamental, é o tempero disto, é o que sopesa isto. E mesmo quando quando a mensagem parece ser de negatividade, ela reclama de facto através da beleza que haja uma harmonia e uma salvação para os homens.

Uma frase para estes 50 anos do 25 de Abril?

Que seja vivido profundamente para que um dia possa ser esquecido.