Políticos, empresários, gestores e jornalistas foram chamados esta terça-feira à linha da frente, em Lisboa, para debater um dos temas que tem marcado a atualidade informativa, sobretudo nos últimos dois anos — das ‘fábricas’ de disseminação de notícias falsas durante a campanha presidencial norte-americana de 2016, passando pela escolha da expressão Fake News para palavra do ano no Collins Dictionary na American Dialect Society em 2017, sem esquecer os repetidos pedidos de desculpa de Zuckerberg e efetiva reação do Facebook, e com o (tão recente) suposto esquema ilícito de divulgação de mensagens "mentirosas" pelo WhatsApp patrocinado por empresários que apoiam o recém-eleito presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. O tema impõe-se.

E se o arranque foi dado hoje no palco principal da Web Summit, sob o mote Podemos travar o surgimento de Fake News?, o facto é que são vários os debates agendados em torno deste tema ao longo dos quatro dias da conferência de tecnologia que decorre na Altice Arena e na Feira Internacional de Lisboa.

“Eu encontrei uma citação do Churchill que diz: uma mentira dá quase a volta ao mundo antes da verdade sequer vestir as calças. Portanto, não é uma coisa nova, mas com as redes sociais está a tornar-se cada vez mais um tema. Comparando com o tempo de Churchill, a mentira já deu a volta ao mundo e a verdade ainda nem sequer acordou, [a rapidez] é a grande mudança”, disse Ana Brnabic.

O sentimento é esse, mas a própria primeira-ministra da Sérvia viu-se a citar erradamente Churchill esta terça-feira — não sendo claro se estava ciente disso ou não. Aliás, a atribuição errada desta citação ao estadista britânico deu que falar nos Estados Unidos, em outubro de 2017, quando o jogador da NFL Colin Kaepernick — que se ajoelhou durante o hino nacional como forma de protestar contra a violência policial em relação aos afro-americanos, espoletando a polémica e acabando por ficar sem equipa — “citou” Churchill num tweet, respondendo com a famosa frase a relatos que davam conta da sua vontade de regressar à competição e sobre o seu compromisso de não voltar a manifestar-se desta forma.

Apesar da gafe, Ana Brnabic colocou o dedo na ferida: a velocidade com que as notícias falsas se disseminam é uma parte importante do problema — até porque a viralidade deste conteúdo, como notou David Pemsel, CEO do The Guardian Media Group, sustenta um modelo de negócio lucrativo.

“Há claramente um modelo de negócio na viralidade. E existe uma contradição entre [produzir conteúdos de] qualidade — e conseguir que isso seja financiado — e o facto de a viralidade ser muito rentável. Estas duas coisas não se ligam”, diz.

“Podemos olhar para trás e reconhecer que este tipo de coisas [notícias falsas] já existiam, mas não tínhamos plataformas com 2 mil milhões de utilizadores [numa referência ao Facebook], algoritmos e inteligência artificial. (…) O facto é que isto se tornou um desafio para a democracia e um problema social, e se os algoritmos vão decidir o que vemos, então tem de haver uma responsabilidade partilhada”, defende.

E as gigantes tecnológicas não se podem demitir da sua cota parte de responsabilidade, diz o CEO, reconhecendo já uma mudança de discurso: “Há um ano as plataformas diziam-nos que isto não era um problema seu, que o seu foco estava em ligar utilizadores, mas nos últimos 12 meses acho que perceberam que se não assumem a sua responsabilidade, os reguladores e os líderes [governamentais] vão agir”.

Mitchell Baker, presidente executiva da Mozilla, ressalva que “não vamos resolver o que faz parte da nossa humanidade com tecnologia” e defende que é preciso estudar o comportamento humano e perceber o que leva as pessoas a partilhar notícias falsas. “Olhar só para as plataformas é inadequado”, diz, alertando ainda para o risco de se colocar nas mãos destas empresas o poder de definir o que é ou não aceitável fazer em sociedade e em democracia.

Sem colocar o ónus sobre as plataformas e cautelosa no que diz respeito à regulação em excesso das empresas tecnológicas como forma de travar o surgimento de Fake News — "Não acredito que uma regulação em excesso nos leve a ter sociedades melhores e, normalmente, isso não é bom para a democracia”—, Ana Brnabic sugere outra abordagem: “Eu investiria estrategicamente em educação. Precisamos de voltar a ensinar os miúdos a pensar: a ter pensamento analítico, a questionar informação e a autoridade, a ter pensamento criativo”. E enquanto se procuram formas de colmatar ou resolver este problema, a primeira-ministra assume que “os governos terão de se habituar a ser alvo de críticas, merecidas ou não”, o que os forçará a “serem mais transparentes e a repensar a forma como comunicam com os seus cidadãos”.

Já num outro painel, John Saunders, CEO da agência de marketing e relações públicas Fleishmann Hillard, recusa, numa conversa com Steve Clemons, editor da The Atlantic, a ideia da empresa tecnológica como bode expiatório, mas fala de um tempo novo no relacionamento entre plataformas e governos.

“Já não podes virar as costas ao mundo e dizer: é a minha plataforma e faço o que eu quiser. Tens de ter valores. [Mark] Zuckerberg está a aprender muito rápido que o Facebook não pode ficar apartado da sociedade, faz parte da sociedade. E há algumas pessoas muito desapontadas pela forma como o Facebook foi manipulado em 2016 e a exigirem à empresa que tome medidas, e isto é muito importante para a democracia”, exemplifica.

Comparando estas empresas a uma pessoa que chega à maioridade — a Google fez 20 anos este ano; já o Facebook tem 14 anos —, Saunders diz que cabe às mesmas assumirem as responsabilidades da vida adulta e dá ênfase à importância de se ter um propósito: “A minha mãe costumava dizer esta frase ‘If you don't stand for something, you'll fall for anything’ [Se não és firme da defesa de algo, vais cair por qualquer coisa, tradução livre].


A Web Summit arrancou esta segunda-feira, 5 de novembro, e decorre até quinta-feira na Altice Arena e na Feira Internacional de Lisboa. O evento nasceu em 2010 na Irlanda e mudou-se em 2016 para Portugal. Este ano, na sequência de um acordo entre a organização e a cidade de Lisboa, a permanência foi estendida por mais dez anos, até 2028. Nesta edição são esperados mais de 70 mil participantes de 170 países. Saiba tudo sobre esta terceira edição em Portugal aqui.