Seis anos, três eleições legislativas, os mesmos problemas de sempre. Se há coisa que custa em Portugal é incapacidade de decidir. Tudo se mede em décadas. Como o processo eleitoral é igual e, apesar das muitas promessas, os empecilhos são os do costume. E a impunidade também, o grau zero da responsabilização.

Estamos na era da digitalização e da Inteligência Artificial, mas continuamos a votar como na Idade da Pedra. O sistema eleitoral é o mesmo de há 50 anos e mais de 761 mil votos vão para o lixo. O número de eleitores recenseados no estrangeiro passou de 300 para 1,5 milhões, mas a abstenção continua a rondar os 90%.

Começo pelo fim. Em Abril do ano passado o governo criou um grupo de trabalho para a modernização eleitoral no estrangeiro, com o objectivo aperfeiçoar o voto, já que em 2018 o recenseamento automático fez aumentar de 300 mil para 1,5 milhões o número de eleitores, mas em 2022 a abstenção na Europa e Fora da Europa rondou os 90%.

A crítica é antiga, embora a situação venha a agravar-se: os voto por correspondência tem muitas falhas e apenas é possível votar presencialmente em 150 localidades, apesar de haver portugueses espalhados por 186 países do mundo. Há quem tenha de percorrer oito, nove e mais horas de automóvel, com a despesa de combustível inerente, ou até apanhar um avião para votos. Os emigrantes dizem que são eleitores de segunda.

Por sorte, foi criado este grupo de trabalho e em 2024 tudo será diferente. Ou não. "Tendo em conta os vários processos eleitorais que, entretanto, foi necessário preparar (CCP, Parlamento Europeu, Regionais e Legislativas), o grupo de trabalho ainda não teve oportunidade de aprovar as suas conclusões/recomendações", diz o Ministério da Administração Interna.

Então, pergunto eu, não seria natural que, exactamente porque se sabe que vêm aí outros processos eleitorais, houvesse uma solução para os problemas de quem vota? Além de que o governo caiu a 7 de Novembro e as conclusões do grupo de trabalho deviam ter sido apresentadas em Outubro.

Não admira, nestas condições, que a abstenção seja de 88% no círculo Europa e 89% no círculo Fora da Europa, que, em conjunto, elegem quatro deputados.

Passo ao desperdício de 761 mil votos, contas das legislativas de 2022. Como é possível deitar fora, literalmente, 13% dos votos validados? O Bloco de Esquerda foi o partido mais castigado,  112 mil votos inúteis, o CDS ficou fora da Assembleia da República apesar de ter tido mais de 89 mil votos, mais do que o Livre ou o PAN, que elegeram deputados. A opinião da mais de metade da população da Portalegre foi ignorada. Espanta-me, até, como é que estes eleitores têm ânimo para votar.

Tudo isto acontece graças ao Método D'Hondt, a fórmula matemática, ou o algoritmo, como é feita a distribuição de mandatos. Há 22 círculos eleitorais, correspondentes aos 18 distritos do continente mais Madeira, Açores e os círculos Europa e Fora da Europa. Quanto mais população, maior a possibilidade de fazer eleger.

Há soluções pensadas e até propostas para colmatar estas falhas e tornar o sistema mais proporcional, como criar um círculo de compensação nacional, como existe nos Açores, ou um círculo único, como existe na Madeira. Nestes dois casos, a imposição foi do Tribunal Constitucional. Se os partidos "grandes" estão satisfeitos com a situação, que, obviamente, incomoda os "pequenos", estes podem unir-se a levar o assunto ao TC, só não o fazem se não quiserem.

Já agora, se tem curiosidade de saber se o seu voto serviu para eleger algum deputado, vá dar uma espreitadela ao site omeuvoto.com, um projecto criado por Luís Humberto Teixeira, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e Carlos Afonso, CEO da Impulsys, uma empresa de sistemas de informação.

A reforma do sistema eleitoral devia ser um imperativo e há décadas que é discutida. A Assembleia da República tem recebido propostas, uma delas da autoria de José Ribeiro e Castro. Os portugueses não conhecem os deputados que elegem, com poucas exceções. Quem os escolhe é o partido e é perante o partido que respondem, em vez de responderem perante os eleitores.

Mas falta coragem aos políticos e o parlamento continua a degradar-se. Há mais de 25 anos, era Marcelo Rebelo de Sousa presidente do PSD e António Guterres secretário-geral do PS, os dois maiores partidos viabilizaram uma revisão constitucional para permitir alterar o sistema eleitoral. A ideia era criar um modelo misto de círculos uninominais, em que se votam pessoas, e um círculo nacional, em que se vota num partido. O acordo foi assinado por Marques Mendes e por Jorge Lacão, na altura líderes parlamentares dos respectivos grupos. Ficou tudo na gaveta.

Mas há outras esquizofrenias. A lei que estabelece o "regime jurídico da cobertura jornalística em período eleitoral e regula a propaganda eleitoral através de meios de publicidade comercial" é uma aberração. Começa por não ser equitativa e trata de forma diferentes partidos grandes e pequenos, partidos com e sem assento parlamentar, partidos com anos de existência ou acabados de formalizar.

Além disso, define um período de reflexão, como se não houvesse hoje voto antecipado ou Internet e as pessoas não pudessem aceder a todo o tipo de informação. É uma lei da Idade da Pedra a vigorar na era da digitalização e da Inteligência Artificial.

Sobre muito mais poderia aqui falar, da lei do financiamento dos partidos políticos ao voto electrónico, passando pelo papel obsoleto da CNE, a Comissão Nacional de Eleições, mas não vou alongar-me mais. Termino apenas com um apelo ao voto, porque apenas com a participação de todos é possível mudar alguma coisa.