Nascido e criado naquela aldeia que a água engoliu, é com relutância que Manuel Barata, de 77 anos, morador em Portela do Fojo, no mesmo concelho, olha para o que designa de esqueleto.

“Não gosto de ver aquilo assim. Lembra-me que passou ali a guerra, porque eu também andei na guerra”, afirmou à agência Lusa Manuel Barata, que fez a tropa na ex-colónia portuguesa Moçambique.

Da aldeia, apagada e recolocada agora no mapa, Manuel Barata recordou as pessoas que ali moraram, fazendo uma viagem ao passado e aos seus 10 anos de idade, “quando a barragem encheu” e ele, pais e irmã tiveram de deixar Vilar.

Assim como a família de Manuel Barata, todas as outras – “30 e tal” - tiveram de sair.

“Avisaram para a gente sair. Pagaram o que eles quiseram”, disse o antigo emigrante, lembrando quem ameaçou ali morrer afogado se não lhe pagassem o que exigia.

“A água já estava a chegar ao primeiro andar e ele estava cercado. Disseram ‘pode sair, que a gente dá o que pediu’. E saiu de barco”, contou Manuel Barata.

Da “povoação tão pequena” lembra, por exemplo, que “havia dois lagares de azeite”, atestando a importância da agricultura e floresta - “era azeite, milho, pinhal, mel”, concluindo: “Era a povoação do concelho de Pampilhosa da Serra que vivia melhor”.

“‘Azeiteiros do Vilar’ era a alcunha que nos davam”, declarou, explicando que “as ruínas das casas de habitação já estão todas à mostra”, mas o Zêzere ainda não destapou moinhos, “pelo menos dois”, nem os dois lagares de azeite.

O ressurgimento da aldeia não é coisa nova. No passado, sem conseguir precisar quando, o morador garantiu que “já aconteceu assim como está”. E, vendo o leito do rio, só se lembra uma vez.

Destacando que no verão “é uma invasão de pessoal” devido à praia fluvial, Manuel Barata fica agora na dúvida: “Se não houver água, não sei se vêm ou se vêm mais para admirar aquilo”. Mas deixou escapar. “Mas virem, vêm”, disse.

Foi o que fez Paulo Caracol, de 59 anos, morador no vizinho concelho de Góis, que passeou pelas ruínas, relatando as descobertas: “Sítios que deviam ser quartos, janelas, fornos, caminhos estreitos”.

“É um misto, alegria de ver coisas que fazem parte da História da região e tristeza por estar sem água”, referiu, quem viu a aldeia de Vilar, ou melhor, o que resta dela, pela primeira vez.

Indiferentes ao interesse que as ruínas suscitavam, três homens do concelho da Lousã, todos reformados, estavam na pesca desportiva à “caça” de bogas, carpas ou achigãs, certos de que menos água no rio “não faz diferença” para esta atividade.

“É igual, o peixe continua cá”, disse um deles. Outro atirou que “o peixe está mais junto”, ao mesmo tempo que lamentava haver “pouco peixe à vista de há 20 anos”.

No local, a piscina flutuante está agora em terra firme “à espera de que a água suba para ficar a flutuar”, disse à Lusa o presidente da Junta de Freguesia de Portela do Fojo – Machio, Henrique Fernandes Marques, esperançado de que o nível do rio suba e o turismo também.

“É muito importante para nós que, com a Câmara, temos investido em infraestruturas no local”, declarou o autarca, exemplificando a instalação de uma churrasqueira, bar e parque de merendas, e mais recentemente a reabilitação da estrada da Portela do Fojo até ao Vilar. Segue-se a colocação de uma plataforma para acostagem de embarcações.

Segundo Henrique Fernandes Marques, a cota máxima do Zêzere naquele local situa-se perto de um nicho das “Alminhas” e, apesar de distarem pelo menos 150 metros até onde agora está o nível do rio, é de esperança que fala, apontando que ainda falta “março, abril” para chover e dizendo o provérbio “abril, águas mil”.

Em Figueiró dos Vinhos já quase se pode atravessar a pé o rio Zêzere

Na foz de Alge, quando a ribeira com o mesmo nome se cruza com o Zêzere, no concelho de Figueiró dos Vinhos, norte do distrito de Leiria, não falta muito para se poder atravessar o rio a pé.

“Agora ainda não vai, mas breve já vai”, garantiu José Emílio, com o conhecimento dos seus 72 anos, ele que nasceu “quase à borda de água”, nos Caboucos, freguesia de Arega, e que noutras ocasiões, quando o nível da água do Zêzere desceu de forma acentuada, atravessou o rio de trator e a pé.

Quando a reportagem da agência Lusa o encontrou, José Emílio já tinha deslocado o seu barco a remos para água.

“Fui pô-lo para a água, porque o rio desceu e [o barco] tinha ficado em terra”, afirmou José Emílio, que tem “licença para a pesca, para lançar rede ao rio”.

Não o faz porque não tem água.

“O peixe está todo para baixo. Procura sempre a fundura”, explicou, desfiando as consequências da seca ou da falta de chuva para a contínua descida do nível da água do rio e para a aridez dos solos nas imediações.

Segundo José Emílio, “é mau para toda a gente” e “vai dar um prejuízo de todo o tamanho”.

“Quando o rio está cheio, vem muita gente. Agora vem gente, porque nunca viu o rio assim”, desabafou, referindo que “se o rio encher até ao normal, como pertence, a casa do Clube Náutico fica isolada”.

Ana Paula, de 50 anos, a trabalhar no restaurante junto à foz, falou em desolação, enumerando as atividades que o estado do rio leva consigo, do comércio à agricultura e ao turismo. E depois há “os animais, a natureza”, continuou.

Do turismo, Ana Paula, confiante de que a chuva comece a cair, adiantou que as “pessoas deslocam-se pela curiosidade”.

Foi o que sucedeu com Maria Oliveira, de 23 anos, de Alvaiázere, que repetiu por estes dias a viagem que tinha feito em setembro à Foz de Alge, para confirmar, ao vivo, o que já tinha visto em imagens.

“Em quatro meses passou-se isto?”, questionou, repetindo não acreditar que "isto estivesse assim”, que o rio que então fotografou e no qual andou de canoa está muito mais vazio, que a paisagem circundante está menos verde.

O presidente do Clube Náutico de Figueiró dos Vinhos, António Dias, também falou em desolação.

“É uma desilusão total, fartamo-nos de trabalhar para nada. O arranjo de uma plataforma para acostagem de embarcações, como aquela que tivemos de a desmembrar toda, é uma despesa enorme e um grande transtorno para o clube”, afirmou António Dias.

António Dias, que trabalhou para a EDP e que foi “criado no rio”, explicou que perante uma situação destas é “com grande mágoa” que vê tudo ficar da forma que está.

“Nós que somos criados no rio ganhamos amor a tudo aquilo (…). As pessoas que lá vivem não podem usar o rio nem para tirar a água, a agricultura que bombeia água do rio e neste momento é impossível também pescar. E a seguir vêm os fogos e não há água sequer para os meios aéreos, em caso de incêndio, atuarem”, elencou, acrescentando também o impacto no turismo que “é péssimo”.

É um “somatório de preocupações”, resumiu o presidente do Clube Náutico.

Fonte da Câmara de Figueiró dos Vinhos expressou à Lusa preocupação face à falta de água no rio Zêzere, lembrou os impactos que a situação pode vir a ter no turismo no concelho e manifestou satisfação pelo anúncio do Governo de que a Barragem de Castelo de Bode deixará de produzir energia elétrica.

Figueiró dos Vinhos é um dos municípios abrangidos pela albufeira de Castelo de Bode.

O Governo restringiu na terça-feira o uso de várias barragens para produção de eletricidade e para rega agrícola devido à seca em Portugal continental.

Para já, há quatro barragens cuja água só será usada para produzir eletricidade cerca de duas horas por semana, garantindo "valores mínimos para a manutenção do sistema: Alto Lindoso e Touvedo, no distrito de Viana do Castelo, Cabril (Castelo Branco/Leiria) e Castelo de Bode (Santarém).

* Por Sílvia Reis (texto) e Paulo Novais (fotos), da agência Lusa