Prometia ser um dos debates mais quentes, conflituosos até, desta sequência de confrontos no âmbito das eleições legislativas de dia 30, prevendo-se que ambos os candidatos à mesa tivessem de calçar as luvas de boxe para se degladiarem em direto. E assim foi, mas o primeiro murro foi dado por António Costa e não André Ventura.

Talvez tendo tomado notas da forma como Rui Tavares debateu com o candidato do Chega na noite anterior, o secretário-geral do PS deixou a placidez e a postura de orgulho ferido que vestiu na sua discussão com Jerónimo de Sousa para somar os primeiros pontos.

A propósito da primeira pergunta feita por José Adelino Faria, jornalista que moderou este debate na RTP, Costa fugiu às questões quanto à responsabilização do Governo quanto à falta de preparação para evitar que os eleitores confinados ficassem privados de votar para encostar Ventura à parede quanto à sua relação com a vacinação.

“Eu fico muito preocupado quando vejo responsáveis políticos como o deputado André Ventura pôr em causa e em dúvida a importância da vacinação”, disse, lembrando a adesão dos portugueses à imunização contra a covid-19.

Cheirando sangue, e aproveitando que Ventura não o interrompeu, Costa lembrou que Ventura testou positivo à covid-19 em agosto e que só depois disso é que começou a considerar vacinar-se. “Agora recentemente, em dezembro, estava a equacionar se devia ou não ser vacinado, mas que tinha dúvidas, que precisava de ter mais informação. Eu fico arrepiado quando ouço isso de um responsável político. Um responsável político tem de dar o exemplo”, atirou.

As declarações em questão foram proferidas pelo presidente do Chega a 22 de dezembro à CNN, quando de facto disse que estava a considerar tomar a vacina, não dando, contudo, uma resposta definitiva.

“Fico contente que as grandes questões que traz para o debate com um líder político seja o meu estado ou as minhas opções de saúde. É uma questão pessoal, colocar as minhas opções em público não lhe fica muito bem”, retorquiu Ventura.

No entanto, perante a insistência de Costa e até de Adelino Faria, Ventura acabou por consentir. Se primeiro disse que não se pôde vacinar imediatamente por ter ficado infetado, depois corrigiu. “Quero-me vacinar, já admiti isso”, afirmou, não deixando de lembrar que não recebeu a dose numa primeira fase porque não quis fazer parte do lote de governantes e deputados que receberam vacinas prioritárias enquanto “polícias, bombeiros, professores, ainda não estavam vacinados. “Eu deixei-me ficar para trás, não fui a correr para ser vacinado e salvar a minha saúde”, lançou

“Fico muito feliz, Acho um grande progresso, porque disse à CNN que estava a equacionar — fico feliz que de 22 de dezembro até agora tenha ultrapassado as suas dúvidas”, respondeu Costa.

Quanto à questão verdadeiramente premente, da inibição do direito de voto dos cidadãos confinados, ambos defletiram.

  • Costa disse que “a Assembleia da República procedeu a uma alteração da lei eleitoral até nas últimas semanas para alargar a hipótese de votação antecipada” e mencionou o parecer pedido à Procuradoria Geral da República “para garantir a liberdade de votar de quem tem direito a votar e a segurança de quem vai votar”
  • Ventura desviou as responsabilidades do Parlamento, lembrando que o Governo já tinha os dados quanto ao potencial infeccioso da Ómicron e que, portanto, já “sabia que isto podia acontecer e não o quis fazer. Andou aos ziguezagues”. “O Governo tem neste momento todos os mecanismos para, por via administrativa, fazer as alterações que tiver de fazer”, continuou, adicionando que outros países puseram em prática alternativas.

Daí, a discussão passou para o estado da Saúde no país, com Ventura a atacar o executivo do atual primeiro-ministro por, ainda antes da pandemia já haver problemas — foi aí que se serviu da primeira de várias fotocópias, uma das suas imagens de marca —, deixar “o caos nos hospitais” e fazer “adiar três milhões de consultas”.

Já Costa defendeu que “a situação nos hospitais, graças à vacinação, está muito controlada”, e que o volume de internados por covid-19 é de apenas 10% em relação ao total e que o SNS está a recuperar dos atrasos em relação às urgências, às cirurgias e às consultas.

Foi o primeiro round de um combate que veio a ficar mais truculento — e sujo. Se de Ventura já se esperava a postura desafiadora, António Costa também puxou das mangas. E deixou um de vários mimos trocados ao longo da noite: “Há um mundo que nos separa. O senhor elege- me como o seu inimigo nº1. eu sou um democrata, não o equaciono como meu inimigo, mas tudo nos separa. Comigo, o senhor não passa. Não estou aqui para o moderar ou mitigar”.

A taxa de IRS do Chega, as percentagens que não são pontos percentuais

Se há conclusão a tirar deste debate é que os candidatos não vieram falar concretamente do que querem para o país nem de políticas concretas, pelo menos das suas. Já dos oponentes, é outra conversa.

Costa tomou a lição de Rui Tavares e, tal como o candidato do Livre, procurou desarmar Ventura ao enunciar uma medida do seu programa político, a taxa única de IRS.

“Tem fugido muito a falar no seu programa, em muitas propostas e uma delas é profundamente promotora de desigualdade”, disse, ensaiando o seu ataque. Defendendo que uma taxa única de IRS implica que pessoas com diferentes rendimentos, de banqueiros a professores ou polícias, paguem os mesmos impostos, perguntou ao deputado do Chega: “Acha que isto é uma sociedade justa? Porque é que vamos romper aquilo que é um pilar básico da Europa democrática e social, um entendimento que o sistema fiscal deve ser progressivo e que cada um deve pagar mais em função do que o ganha?”

Declarando-se surpreso por Costa trazer à colação temas fiscais, Ventura ignorou as questões do secretário-geral do PS, apontando antes que o executivo foi responsável “pela maior carga fiscal da história”, 34,8% do PIB, sendo que “se muitos pequenos proprietários estão a asfixiar, é por causa de António Costa”.

“Quem mais trabalha, quem mais se esforça, quem mais investe e quem mais cria riqueza é no sistema socialista quem é mais penalizado”, continuou Ventura, que apontou baterias para o despesismo do governo socialista. “Não podemos fazer reformas corajosas porque temos um Estado que engrossa clientelas para todo o lado e por isso tem de ir buscar aos cidadãos trabalhadores”, atirou.

“A minha proposta é esta. Metade da classe política e das nomeações em Portugal são para acabar. Temos políticos e dirigentes a mais, não precisamos deles. Só aí pouparíamos milhões”, disse.

Sem responder quanto à sua proposta, foi apenas pela insistência de Adelino Faria que o candidato do Chega lá falou na taxa única de IRS. Apesar de tal não constar do seu programa eleitoral, Ventura disse que a sua proposta é gradual, querendo seja um projeto a quatro anos e que “se alcance progressivamente uma taxa de IRS que seja igual para todos”.

Logo de seguida, para mudar de assunto, o deputado do Chega lembrou que, apesar de beneficiar dessa medida enquanto deputado, procurou reduzir o salário dos governantes e dos deputados.

Não obstante a divagação, Costa respondeu que, na verdade, “a carga fiscal tem vindo a reduzir”, já que o Governo não fez “nenhum aumento de impostos”, mas que a receita tem aumentado pelo “facto do emprego ter crescido e os rendimentos também terem aumentado”, sendo que o maior volume colecionado tem sido “nas contribuições para a Segurança Social”. O secretário-geral do PS, aliás, lembrou que uma das suas primeiras decisões no Governo foi baixar o IVA da restauração. “E fomos atacadíssimos”, acrescentou.

Ventura aproveitou a deixa para lançar uma das suas melhores investidas da noite. “Veio aqui como se tivesse feito um milagre económico. Só no ano passado, 400 mil portugueses foram enviados da classe média para a pobreza. Este é o seu legado, são 400 mil novos pobres e 500 mil pensionistas que perderam o poder de compra. Pena que Rui Rio nunca lhe tenha dito isto”, disse. Não seria a primeira nem a última que o presidente do PSD seria mencionado pelo nome.

O presidente do Chega disse ainda que o que o país precisa é “crescimento económico a sério”, que não se faz “com medidas de distribuir a quem não quer trabalhar”, mas sim a “atrair investimento direto, estrangeiro e nacional” e que lamentando que os empresários portugueses sejam confrontados com um sistema fiscal “burocratizado, com taxas e taxinhas”.

Mas se esse foi um dos seus melhores momentos, esteve próximo de um dos piores, Ventura cometeu uma “argolada” a tentar comparar os números do desemprego entre Portugal e Espanha.

Desafiando as contas de Costa — que tinha dito que o Governo tinha conseguido reduzir a taxa de desemprego para 6,1% —, deu o exemplo do país vizinho, dizendo que se “Espanha baixou a taxa de desemprego em 20%” em 2021, António Costa “baixou em algumas décimas”.

Costa retorquiu, mencionando que conseguiu descer a taxa de desemprego de 12,5%, em 2015, para 6,1%, em 2021, e referindo que a mesma taxa em Espanha é de 14,5%. Com isto, o secretário-geral do PS tentou explicar a Ventura que 20% de uma taxa de desemprego não se traduzia numa descida assim tão significativa, resultando também na queda de alguns pontos percentuais.

O candidato do Chega, porém, manteve-se irredutível, e não entendeu, ou não quis entender, que percentagens e pontos percentuais são valores distintos. Ao invés, disse a Costa que “não sabe o que é uma percentagem”.

A isto, o primeiro-ministro respondeu desta forma: “O senhor deputado fala muito, mas em regra tem aquela tática que é clássica das pessoas da sua família política e que é, pega num caso e procura generalizar, divide o mundo entre bons e maus e depois leva-o a mostrar muitas fotocópias, mas depois pouca realidade”.

A corrupção, a justiça, o sempre omnipresente Sócrates e a ameaça de processo judicial

À medida que os minutos foram passando, também a qualidade do discurso se degradou. Chegados ao tema da corrupção, Costa voltou a apontar as incoerências de Ventura, que “fala, fala, fala, mas depois é preciso é ver o que faz”.

Servindo-se dos registos em Diário da República, o secretário-geral do PS disse que “fala muito da corrupção, mas no dia 19 de novembro faltou à Assembleia da República”. “Sabe que nesse dia foram votados dois diplomas fundamentais do pacote de combate à corrupção? Foram aprovados por todos os deputados por unanimidade, registando-se a ausência do Chega”, afirmou, acrescentando que “no momento da verdade, em que é para votar, o senhor deputado não está”.

Acusando o toque — e defendendo que faltou à votação final porque já tinha feito a sua participação numa comissão prévia, Ventura disse nunca esperar ver “António Costa trazer o tema da corrupção para cima da mesa”.

“O ministro da Justiça de José Sócrates trazer a corrupção para cima da mesa é de bradar aos céus. Portugal, com o Governo de António Costa, passou para a 33ª pior posição do indíce de corrupção”, disse o candidato do Chega, numa declaração errónea, já que Costa ocupou essa pasta num governo de António Guterres, como o primeiro-ministro lembrou.

Mas Ventura, que, como assumiu, tem na corrupção “uma das bandeiras” que o Chega cavalga, continuou. “Em 2019, havia 15 autarcas arguidos por crimes económicos, 14 eram do PS. Eu tenho factos, ao contrário dos seus outros opositores, que brincam consigo, eu não:  Oito governantes seus estão a braços com a justiça. Então vem aqui falar de corrupção?", exclamou. “Devia pedir desculpa aos portugueses pelos inúmeros casos de corrupção que o PS gerou e por estarmos a julgar um ex-primeiro-ministro que nos tirou milhões”, concluiu, mostrando uma fotografia de Costa ao lado de José Sócrates.

Foi nesse ponto que o debate começou a entrar em caos dialético. “Senhor deputado, para mim não há filhos nem enteados e ninguém está acima da lei, seja socialista ou não seja socialista. Qualquer socialista que viole a lei tem de ser responsabilizado e é uma vergonha para o PS", respondeu Costa, que lembrou ainda que foi contra a legislação que produziu enquanto ministro da Justiça que Ventura fez a sua tese de doutoramento em 2013.

Para as alegações estavam reservados os piores momentos. Após Costa fugir à questão de se apoiaria um Governo PSD para não deixar o Chega assumir posições ministeriais — “há uma forma simples que é assegurarmos uma maioria ao PS”, respondeu — Ventura assumiu que o seu objetivo é “tirar António Costa e o PS da governação. E a razão é simples e ficou hoje aqui claro”. “Faremos todos os sacrifícios que for preciso para isso", declarou.

“Eu não vou descansar enquanto o PS não seja afastado da esfera do poder, enquanto os Rendeiros desta vida, os Salgados e os Sócrates que vieram do seu partido sejam postas onde merecem estar, que é na prisão”, continuou, para depois, sabendo que Costa já não dispunha de mais tempo, lançar acusações.

“O seu historial não abona muito na justiça. Como sabe bem, tentou interferir no caso Casa Pia e há escutas suas por todo o lado. A mim não me dá lições de corrupção”, concluiu.

Mas foi Costa a ter a última palavra. Lembrando a sentença a que Ventura foi sujeito por ofensas à família Coxi durante o confronto com Marcelo Rebelo de Sousa no âmbito das eleições presidenciais, o primeiro-ministro atirou: “A última vez que fez acusações num debate, acabou condenado no Supremo Tribunal de Justiça”.