I

O raio

Chegámos com as barrigas cheias. Doridas. Os ventres negros, carregados de água escura e fria e de raios e trovões. Vínhamos do mar e de outras montanhas, e vá-se lá saber de que lugares mais, e vá-se lá saber o que tínhamos visto. Raspávamos a pedra no alto dos cumes, como sal, para que não brotassem nem as ervas daninhas. Escolhíamos a cor das cumeadas e dos campos, e o brilho dos rios e dos olhos que fitam o céu. Quando os animais selvagens nos vislumbraram, encolheram-se nas luras e contraíram o pescoço e levantaram o focinho, para sentirem o cheiro da terra molhada que se aproximava. Tapámos tudo como um cobertor. Os carvalhos e os buxos e as bétulas e os abetos. Chiiiiiiu. E todos se calaram ao mesmo tempo, porque éramos um tecto severo que decidia sobre a tranquilidade e a felicidade de ter o espírito seco.

Depois da chegada, e da quietude, e da pressão, e de comprimir o ar suave contra o chão, disparámos o primeiro raio. Bang! Que descanso. E os caracóis enroscados estremeceram dentro das suas casas solitárias, sem nenhum deus nem nenhuma prece, sabendo que, caso não morressem afogados, sairiam, redimidos, para respirar a humidade. E então derramámos a água em gotas imensas, como moedas sobre a terra e a erva e as pedras, e o trovão ecoou, retumbante, nas cavidades torácicas de todos os animais. Foi nesse instante que o homem disse, raios partam. Disse-o em voz alta, porque quando alguém está sozinho não precisa de pensar em silêncio. Raios partam, inútil, a tempestade apanhou-te. E nós rimo-nos, ih, ih, ih, ih, enquanto lhe molhávamos a cabeça, e a nossa água se metia por dentro do colarinho da camisa, e percorria os ombros e as costas, e as nossas gotinhas frias despertavam o seu mau humor.

O homem vinha de uma casa ali perto, empoleirada no meio da cumeada, sobre um rio, que devia ser frio, porque se escondia debaixo das árvores. Tinha deixado aí duas vacas, alguns porcos e galinhas e cães e dois gatos desenraizados, uma mulher e duas crianças e um velho. Chamava-se Domènec. E tinha uma horta viçosa no sopé da montanha e umas terras mal lavradas à beira do rio, porque as tarefas da horta ficavam a cargo do velho, que era o seu pai e que tinha as costas direitas como uma tábua, e era ele que lavrava as terras. O Domènec tinha ido a essa parte da montanha para experimentar uns versos. Para ver a que sabiam e que som tinham, e porque quando alguém está sozinho não precisa de dizer versos em voz baixa. E, nessa tarde, enquanto foi ver o gado, encontrou um punhado de trombetas-dos-mortos fora da época, e trouxe-as embrulhadas na fralda da camisa. O menino que andava ao colo estava a chorar quando deixou a casa, e a mulher tinha dito «Domènec», em tom de queixa e de súplica, e o Domènec tinha saído na mesma. É difícil fazer versos e contemplar a virtude oculta no interior de todas as coisas, quando as crianças choram com aquela estridência de leitão esfolado, que nos faz, mesmo não querendo, ficar com o coração aos saltos. E queria ir ver as vacas. Tinha de dar uma vista de olhos às vacas. O que é que a Sió percebia de vacas? Nada. O bezerro mugia muuuuuuuuuuu, muuuuuuuuuuu. Desesperado. A Sió não percebia nada de vacas. E voltou a exclamar, raios partam!, porque tínhamos sido rápidas, porra, imprevisíveis e sigilosas, e tínhamo-lo apanhado. Raios partam!, porque o bezerro tinha prendido a cauda numa bola confusa de arames. Os arames tinham ficado presos entre duas árvores e, de tanto puxar, as pernas traseiras tinham ficado destroçadas, e agora brilhavam ensanguentadas, abertas e sujas. Preso entre as duas árvores, mugia muuuuuuuuuuu, muuuuuuuuuuu, e a sua mãe cuidava dele, inquieta. Sob a chuvada, o Domènec foi ter com o animal. Tinha as pernas muito rijas de tanto subir a montanha para respirar ar puro quando as crianças gritavam demasiado, ou quando pesavam demasiado, e o arado pesava demasiado, e o silêncio do velho, e todas as palavras, uma após outra, da mulher, que se chamava Sió, e que era da vila de Camprodon, e que se tinha deixado enganar à grande porque a tinham levado sozinha para o cimo daquela montanha com um homem que fugia e um velho que não falava. E, ainda assim, às vezes o Domènec amava a Sió, e amava-a intensamente. Mas a casa era um fardo, raios partam o diabo. Era bom as pessoas terem mais tempo para se conhecerem antes de casarem. Mais tempo para viverem antes de fazerem bebés. Às vezes ainda a agarrava pela cintura e fazia-a rodopiar no ar, uma e outra vez, como quando namoravam, porque a Sió, meu Deus, a Sió tinha cá umas pernas... Deixou as trombetas-dos-mortos no chão. O bezerro berrava. O Domènec aproximou-se com as duas mãos à frente. Pouco a pouco. A dizer coisas com um tom de voz grave e apaziguador. Chiiiiu, chiiiu, dizia. A mãe fitava-o desconfiada. O cabelo do Domènec estava a pingar. Ao chegar a casa, teria de pôr água a aquecer, para se lavar do frio e da chuva. Olhou para os arames que magoavam as patas do animal sempre que puxava. Pegou na cauda dele com firmeza, tirou o canivete e cortou habilmente o pêlo enredado. E então deixámos cair o segundo raio. Rápido como uma serpente. Zangado. Aberto como uma teia de aranha. Os raios avançam por onde querem, como a água e os aludes e os insectos pequenos e as garças, pois tudo o que é bonito e brilha enche o seu olhar. O canivete, fora do bolso do Domènec, brilhou como um tesouro, como uma pedra preciosa, como um punhado de moedas. O canivete de metal espelhou-nos, polido. Como uns braços abertos, como um chamamento. Os raios enfiam-se onde querem, e o segundo raio enfiou-se dentro da cabeça do Domènec. Para dentro, bem no fundo, até ao coração. E tudo o que via dentro dos olhos era negro, por causa da queimadura. O homem caiu a prumo sobre a erva, e o prado colocou a face contra a dele, e todas as nossas águas agitadas e contentes se enfiaram pelas mangas da camisa, por baixo do cinto, por dentro das ceroulas e das meias, à procura da pele ainda seca. E morreu. E a vaca foi-se embora espiritada, e o bezerro correu atrás dela.

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

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As quatro mulheres que viram isto aproximaram-se do lugar. Pouco a pouco. Porque não estavam habituadas a sentir interesse pela forma como as pessoas morrem. Nem interesse pelos homens atraentes. Nem interesse pelos homens feios. Mas a cena tinha sido fascinante. Tinha brilhado uma luz tão clara que já nunca mais teria sido preciso voltar a ver. O canivete tinha chamado o raio, e o raio branco tinha acertado em cheio na cabeça do homem, tinha feito a risca ao meio do cabelo, e as vacas tinham fugido espiritadas como numa comédia. Devia ter-se escrito uma canção sobre o cabelo do homem e o pente do raio. Na canção, ter-se-ia podido colocar pérolas no cabelo, brancas como o resplendor da faca. E falar sobre coisas do seu corpo, e dos lábios abertos, e dos olhos claros como um copo que a chuva enchia. E do rosto tão bonito por fora e tão queimado por dentro. E da água que lhe caía como uma torrente sobre o peito e pelas costas, como se quisesse levá-lo. A canção também teria falado sobre as suas mãos, curtas e grossas e calejadas, uma aberta como uma flor que vê chegar a abelha, a outra agarrada ao canivete como uma rocha engastada numa árvore.

Uma das mulheres, a que se chamava Margarida, tocou-lhe numa mão, ora para saber se o homem queimava com o raio por dentro, ora apenas para o acariciar. Então, quando as mulheres o deixaram ali e apanharam as trombetas-dos-mortos encharcadas que o homem tinha abandonado, e encerraram o assunto, porque havia muitas outras coisas para fazer e muitas outras em que pensar; como se tivéssemos ficado contagiadas com a sua satisfação e com o trabalho realizado, deixámos de chover. Saciadas. Serenas. E, quando se teve a certeza de que tínhamos parado completamente, os pássaros começaram a dar saltinhos até ao meio dos ramos e cantaram a canção dos sobreviventes, com o estômago pequeno cheio de mosquitos, com a plumagem eriçada e furiosos connosco. Não tinham muito de que se queixar, pois nem sequer tínhamos granizado, só tínhamos chovido o tempo preciso para matar um homem e um punhado de caracóis. E nem sequer tínhamos feito cair nenhum ninho e não tínhamos inundado qualquer campo.

Então retirámo-nos. Extenuadas. E olhámos para a obra realizada. As folhas e os ramos pingavam, e nós fomos, vazias
e lassas, para outro lado.

Uma vez chovemos rãs e outra vez chovemos peixes. Mas o melhor é granizar. As pedras preciosas precipitam-se sobre as aldeias e os crânios e os tomates. Redondas e congeladas. E enchem os socalcos e as veredas de um tesouro de gelo. As rãs caíram como uma maldição. Os homens e as mulheres puseram-se a correr, e as rãs, que eram muitas e muito pequenas, escondiam-se. Ai, meu Deus. Os peixes caíram como uma bênção sobre as cabeças dos homens e das mulheres, como bofetadas, e as pessoas riam-se e atiravam-nos ao ar como se no-los quisessem devolver, mas não queriam, e nós também não os teríamos querido. As rãs coaxam nas barrigas. Os peixes deixam de se mexer, mas não morrem. Porém, isso não interessa. O melhor de tudo é granizar.

O nome das mulheres

A Eulàlia disse-lhes que o bode tinha ficado com o rabo muito fino, muito fino, como o de um bebé, de tanto que lho tínhamos beijado, e que tinha o membro frio como uma estalactite, e eu fiquei a rir, a rir e a rir, e enforcaram-me por me rir tanto. E foi por rir, como um veneno embriagador que se enfiou dentro de mim, como o leite de bruxa das ervas-leiteiras, que me lembro de todas as coisas. Porque o riso, que corria pelo meu sangue, branco e contagioso como as cócegas, que se me tivessem cortado um braço de mim teria saído leite branco em vez de sangue vermelho, me esvaziou. Podiam ter poupado as torturas, e os quartos que fediam a chichi, e as cordas que esticavam, compridas, compridas, e os trapos de lã cheios de cinza, e a espera, para ver se deixava de rir e confessava. Confessar? O quê? O riso era a única coisa boa, era uma almofada, era como comer uma pêra, era como enfiar os pés numa queda de água num dia de Verão. Não teria deixado de rir nem por todo o ouro do mundo nem por todos os males do mundo. O riso libertou-me dos braços, das pernas e das mãos que me tinham acompanhado tão fielmente até então, e da pele que tinha tapado e destapado tantas vezes, e limpou-me as feridas e a tristeza das coisas que os homens nos podem fazer. Tanto ih, ih, ih, ah, ah, ah esvaziou-me como uma tontinha, e na minha cabeça ecoava um clon, clon sempre que o ar entrava em mim e saía a assobiar pelo nariz e pelas orelhas. Deixou-me a cabecinha como uma casca de noz, pronta para guardar nela todos os contos e todas as histórias e todas as coisas que lhes dissemos que fazíamos, e as que eles diziam que nós tínhamos feito contra Deus, contra Jesus, contra todos os santos e a Nossa Senhora. Qual Nossa Senhora? Um Deus como o pai de cada um, mau, mau, mau, e torturador como eles, e assustado por todas as mentiras nas quais tinham acreditado por repeti-las tantas vezes. Porque nestas montanhas não ficou nenhum dos que nos apontou o dedo, nem daqueles que nos trancaram, que nos procuraram as marcas de bruxas, que fizeram os nós e esticaram as cordas. Porque ficar ou não ficar não tem que ver com o fogo do inferno, nem com o castigo divino, nem com nenhuma fé, nem com nenhuma virtude de nada. Não. Poder apanhar míscaros e cantarelos e fazer chichi e contar histórias e levantar-se todas as manhãs tem que ver com os raios que caem sobre esta árvore ou sobre este homem. Tem que ver com as crianças que saem inteiras e com as que não, e com as que saem inteiras, mas com as coisas trocadas de lugar por dentro. Tem que ver com ser o pássaro que caçou o gavião ou a lebre que caçou o cão, ou não. E Nossa Senhora, a criança e o diabo eram feitos da mesma parvoíce.

Livro: "Eu Canto e a Montanha Dança"

Autor: Irene Solà

Editora: Cavalo de Ferro

Data de Lançamento: 29 de abril de 2024

Preço: € 16,45

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A Joana é a mais velha de todas nós. Vivia perto da minha casa e toda a gente sabia que fazia remédios num tacho, e um dia perguntou-me se eu queria aprender, e se eu queria ir ter com ela à noite. E ensinou-me imenso: a curar febres, e maus-olhados e papeira, e feridas e doenças de crianças e de animais. E a recuperar objectos perdidos e roubados e a lançar um mau-olhado. Que ingénuas! Se a coisa mais contrária a Deus que fizemos foi acordarmos todas as manhãs depois de sermos enforcadas e apanhar flores e comer amoras.

Ninguém se metia com a Joana e todos a procuravam quando os bebés estavam prestes a nascer ou quando as crianças tinham papeira. Até que uma vez caiu muito granizo, e a Joana tinha um campo de trigo, e em todas as terras onde o granizo caiu não restou nada, e no campo da Joana não caiu nem uma única pedra. E disseram que a Joana tinha provocado o temporal com uns pós. E gritaram-lhe, acusando-a de ser bruxa! E então o filho do vizinho, que se chamava Joan Pequeno, que era um menino de cinco anos que lhe tinha chamado bruxa diante de muitos outros, adoeceu dos pés e estes ficaram inchados, arroxeados e negros, e morreu quatro dias depois, e todos exclamaram que a Joana lhe tinha envenenado as sopas. E gritaram, prendam essa velha rameira, essa bruxa! E prenderam-na. E pouco depois de a prenderem choveram rãs pequenas, pequenas, e a Joana disse-lhes que se ela quisesse podia fazer granizar, ou podia fazer cair rãs ou podia matar-lhes todo o gado, e então eu também fui presa e a Joana nunca mais disse nada. Mas isso não aconteceu comigo, pois eu aprendi a rir.

E mais tarde apareceu a Eulàlia, que era de Tregurà de Dalt, e disse-lhes que uma vez tinha ido a Andorra para desenterrar uma criança morta e que lhe tirou as vísceras e o fígado e que fez com eles um veneno para matar as pessoas e o gado. E também lhes contou como atava os homens para que não pudessem deitar-se com outras mulheres, apenas com a sua. Como lhes fazia seis nós nos cordões das ceroulas e em cada nó dizia, eu ato-te a ti de parte de Deus, de São Pedro e de São Paulo e de toda a corte celestial, e de parte de Belzebu e de Tió e de Cuxol, para que não possas unir-te a nenhuma mulher carnalmente senão à tua mulher. E uma vez atou um marido e uma mulher que eram os seus vizinhos e que eram mesquinhos e lhe atiravam pedras. Atou-os com os cabelos das suas cabeças, para que não pudessem copular. E, quando o marido não estava, a mulher não podia viver sem ele, e, quando estava presente e queria aproximar-se dela, todo o seu ser formigava de tal modo que se sentia morrer e não podia suportar que se juntasse com ela. E estiveram assim quatro anos. Quatro anos! Que galhofa! E então, um dia, um filho do casal que guardava as cabras passou com os animais por uma charneca da Eulàlia, e a Eulàlia disse-lhe que os lobos maus comeriam o seu gado. E aí mesmo saltou um lobo entre as cabras e degolou uma delas. E então também prenderam a Eulàlia e, quando estava presa, contou-lhes que numa noite nós as quatro tínhamos acordado uma criança de meses do lado da sua mãe, e tínhamo-la levado connosco para um campo, e tínhamos brincado com ela com se fosse uma bola.

A Eulàlia contava as melhores histórias, ainda hoje as conta, melhor do que ninguém. As que me fazem rir, rir, rir, até que alguma coisa se distende dentro de mim, bem fundo, mesmo mais fundo do que as pinguinhas de chichi. Conta as histórias e às vezes nós aparecemos nas histórias, e sairmos nelas é maravilhoso. A Eulàlia contém em si uma vozinha, lá bem no fundo, que lhe conta as histórias, uma vozinha, a do diabo, que lhe relatava as crueldades, e que o mal que os homens lhe provocavam avivava e desatava-se nela como uma língua que não sabe ficar quieta. A vozinha vinha da sua própria cabeça, como uma nascente, e criava as imagens e as palavras:

«Fomos à floresta, eu em cima de uma burrica preta e a Dolceta da casa dos Conill — que sou eu!, dizia eu —, em cima de uma raposa, e não havia Lua e as estrelas quase não iluminavam, e um ramo meteu-se no meu caminho como uma gânfia a arranhar-me o rosto, e disse, Jesus!, e caí da burrica, e a Dolceta disse-me que nunca mais voltasse a dizer Jesus. E assim foi. Íamos para a Rocha da Morte, e íamos com as axilas besuntadas com um unguento que chamusca os pêlos para sempre, e por isso as nossas axilas estão peladas. Quando chegámos à Rocha, todos, homens e mulheres, cada um de nós, marcámos uma cruz no chão e baixámos as saias e colocámos as nádegas sobre a sua cruz, abjurando da fé e de Deus. E depois, um a um, beijámos o ânus ao diabo. E às vezes tinha forma de gato de três cores e às vezes de bode, e dizia-nos, “Estarás comigo, minha menina?”, e todas respondíamos que sim. E depois comemos queijo e fruta e mel, e bebemos vinho e todos demos as mãos, homens, mulheres e diabos, e abraçámo-nos e beijámo-nos e dançámos e fornicámos e cantámos todos juntos.»

E a Margarida chorava. Chorava e negava todas as coisas, e chorava e chorava pela injustiça e às vezes guinchava, e, enquanto estávamos as quatro encerradas na mesma cela escura, que quase nem sequer era uma cela, porque antes tinha sido um estábulo, eu dizia-lhe, Margarida, não chores, mulher. Eu e a Margarida fazíamos uma boa dupla, porque ela chorava e eu ria, e às vezes, quanto mais ela chorava e mais caretas fazia, e mais ranho e mais saliva expelia, com a cara toda vermelha e muito inchada e toda feia, mais eu ria, e então, quanto mais eu ria, mais ela chorava, e eu dizia-lhe, Margarida, não chores, mulher, e fazíamos uma boa dupla. A Margarida negava tudo, uma coisa após outra, e a única coisa que confessou foi que punha a mesa à noite. Estendia a toalha, punha o pão, o vinho, as iguarias, a água e um espelho, para que os maus espíritos se olhassem nele e se vissem a comer e a beber, e assim não matassem os seus filhos. Mas também podemos ser enforcadas por uma ninharia.

E quando a Eulàlia lhes disse que a Joana era a mestra que trazia os fantasmas e preparava os unguentos com que nos besuntávamos, e a mestra que fazia os venenos de todo o país, e a que invocava o bode da Biterna (1) e urdia todas as outras maldades que as bruxas fazem, e que nós as três éramos as suas discípulas, a Joana não mexeu uma única palha. E a Eulàlia não o disse com má intenção, nem a Joana lhe guarda rancor, pois já estávamos todas acabadas. Só disse isso porque tinha a língua viperina, e eu via como todo o ar fugia da minha boca como uma gargalhada, e a Margarida não parava de chorar. As três sobre a mesma palha suja, cheia de ratos e pulgas.

A Joana não fala nem chora nem nega nem ri, mas ainda é a mestra e ainda é a mais sábia, e encontra sempre os melhores medronhos e os melhores míscaros, e é a que sabe melhor provocar o parto. É a primeira a fazer chichi quando encontramos cruzes na montanha, e a primeira a enfiar aí as nádegas. E é a primeira a fazer cocó sob a árvore onde nos enforcaram. Faz uns cocós duros e inteiros e bem feitos e sorri como um rato enquanto está de cócoras. E também é a primeira a defecar quando encontramos capelinhas e ermidas ocultas.

Nem todos os contos e as histórias que a Eulàlia conta são sobre bruxas ou sobre nós. Às vezes a vozinha sussurra-lhe coisas sobre as montanhas e as pedras e as poças de água, e os pássaros cantam-lhe canções e os fundões relatam-lhe fábulas, e eu sigo-a como uma menina, como um cãozinho, como uma ovelha acabada de nascer da sua mãe, que se fosse preciso se lançaria diante das patas de um cavalo para voltar a ouvir as suas histórias. Porque a Eulàlia faz-me rir.

Era uma vez um rei cristão de Aragão que tinha três filhas lindas como o Sol, conta-me. Acontece que, quando o rei e a rainha começaram a pensar em casar as princesas, souberam que cada uma das três era cortejada por um mouro infiel. Eu gosto das histórias sobre mouros. O rei ficou furioso e fechou-as numa torre muito alta para que nunca mais pudessem voltar a ver os seus apaixonados. Porém, numa noite as três princesas subornaram os guardas com um bom punhado de moedas de ouro e fugiram da torre, e então subiram a três cavalos, cada uma com o seu amante mouro, e cavalgaram rumo às montanhas dos Pirenéus, longe dos reis cristãos e dos reis mouros. No terceiro dia o rei foi ver as filhas para as convencer a recusarem os infiéis e a casarem com príncipes cristãos, mas quando chegou à cela viu que tinham fugido e exclamou:

— Que a maldição de Deus caia sobre elas, estejam onde estiverem!

E o tempo mudou de repente. Uma tempestade de gelo e de neve surpreendeu os seis fugitivos montados nos cavalos, com tanta veemência que cada uma delas se abraçou ao seu amante, e ficaram os seis congelados sem conseguirem dar mais um passo. E ali estão, uma após outra, abraçadas aos seus amados, as três cordilheiras das três irmãs, cobertas de neve, diz a Eulàlia, e aponta para as montanhas.

Ou fala-nos sobre a encantada que alguns aldeões capturaram, juntamente com uma toalha de mesa branca, que lhe tiraram. Coitada da encantada. Fecharam-na numa cozinha para que não fugisse. Era uma mulher pequena, que passava o dia sentada num banquinho a olhar pela janela sem abrir a boca, como se fosse muda ou como se não percebesse a fala humana. Mas uma vez, no final da tarde, a dona da casa onde estava trancada começou a preparar o jantar, e acendeu o lume, e pendurou sobre a lenha uma panela de leite para fazer sopa. De repente, enquanto a mulher andava de um lado para o outro, a encantada gritou:

— Rápido! Rápido! Que o leitinho branco está a fugir!

A mulher foi a correr a olhar para a panela e a encantada aproveitou a distracção para saltar do banquinho e fugir pela porta. E dizem que, um momento antes de desaparecer para sempre, lhe lançou:

— Nunca vão saber para que é que serve a raiz da azeda-romana!

E deu uma risada pequenina de furão e, ainda hoje, os aldeões não sabem para que é que serve a grossa raiz da azeda-romana.

A Margarida às vezes chora por causa das histórias, chora porque um pai converteu as filhas em montanhas, ou chora pelas coisas que nos fizeram, a lã e a cinza e os ferros candentes e as correntes e o banco e os pesos nos pés e o sangue vermelho. Chora por ter morrido, como todas as coisas que morrem. E eu digo-lhe, Margarida, não chores, mulher. E às vezes também chora se nasce um bebé na gruta, e eu digo-lhe, Margarida, não chores, mulher. E depois da tempestade também chorou um pouco pelo homem, porque ficava tão bonito na clareira, dizia. É uma pena que os homens se consumam tão depressa, e que os outros homens se aferrem aos corpos vazios e os escondam e os enterrem para não verem o que também vai acontecer com eles. E chorou quando vieram procurá-lo e o levaram, e nunca mais voltou a fazer-nos companhia. Em contrapartida, deixaram uma cruz no lugar em que o homem foi perfurado pelo raio. Maldita mania de sujarem a montanha com cruzes! Mas esta era pequena. E às vezes íamos vê-la e fazíamos chichi nela, como os cães. E às vezes apanhávamos flores do chão e levávamo-las ao lugar em que o homem se
tinha deitado, levávamos-lhe dentes-de-leão, na brincadeira, porque têm propriedades diuréticas, e as crianças dizem que, se lhes tocarmos, molhamos a cama.

(1) Nome com que se designava o diabo nos Países Catalães durante a Idade Média. (N. dos T.)