Joe Paton é diretor  do programa de investigação em neurociências da Fundação Champalimaud e John Krakauer é investigador na mesma fundação, além de professor na universidade de John Hopkins. Ambos são americanos e ambos mantém uma conversa em português sem seja perceptível dificuldade de comunicação numa língua que não é a que têm como nativa. O que seria, na verdade, apenas um detalhe curioso e até um pouco bairrista, mas acaba por ser mais que isso numa conversa sobre a compreensão da mente e do corpo humano e a forma como a arte e a tecnologia pode contribuir para esse entendimento, entre outras possibilidades.

Além de anos de trabalho em conjunto, Joe Paton e John Krakauer são responsáveis por um evento que tem este ano a sua terceira edição. Chama-se Metamersion, mas podia chamar-se Metavida. Ou seja, literalmente além da vida, como defende John Krakauer. Este Metamersion – que decorre desde dia 16 até este sábado, 18 – tem como mote “Healing Algorithms” [algoritmos que curam].

“Cada vez que uma pessoa tem uma experiência, essa experiência cria uma memória. Essa memória é uma alteração do cérebro. Com a tecnologia temos a possibilidade de aumentar essa alteração. Pode provocar uma alteração como uma droga ou uma vacina”, explica John Krakauer. E é um conjunto de experiências que trouxeram entre 16 e 18 de maio ao armazém da Docapesca, junto à Fundação Champalimaud, em Lisboa.

As peças apresentadas na 3ª edição do Metamersion - Healing Algorithms, que decorre de 16 a 18 de maio, resultam de processos colaborativos levados a cabo por diferentes equipas, algumas das quais compostas por investigadores da Fundação Champalimaud e artistas, incluindo artistas em residência no âmbito da iniciativa de arte e ciência Bridges to the Unknown. Além disso, na sua grande maioria, as peças que serão apresentadas são projetos de investigação em curso no contexto do Digital Therapeutics Centre.

Entre as diferentes peças, destacamos duas artísticas, a Hype Cycle, da Universal Everything e a My Word de Carme Puche, ambas pela primeira vez em Lisboa.

É ainda possível experimentar um menu dos chefs João Augusto e Camacho, criado em colaboração com IA, e com um bar do Flamingo Boémio, e provar um cocktail especial criado também com IA.

Um dos exemplos desta “experiência” proposta no Metamersion é o descrito por Joe Paton. “Há uma instalação que tem uma câmara apontada para um indivíduo e a imagem que está a captar está projetada numa tela. Só que, de vez em quando, um algoritmo altera a aparência do rosto do indivíduo e é uma experiência engraçada quando as pessoas percebem que a sua aparência está a mudar e que, por exemplo, agora são uma pessoa asiática. Num contexto mais terapêutico, imaginemos, por exemplo, usar este mesmo algoritmo para mudar uma expressão emocional”.

É aqui que a investigação científica dá as mãos à arte e à tecnologia, porque aquilo que é lúdico no Metamersion pode ser, daqui a uns anos, aquilo que é também usado para tratar uma determinada condição física ou psiquíca. Ou seja, estes algoritmos curam ou pelo menos regeneram e são usados para algo de bom.

“Estamos sempre a inventar ferramentas que nos ajudam a fazer tarefas de forma mais eficiente e com mais precisão. Isto é a história do ser humano. Os algoritmos são uma ferramenta, mas não uma substituição para a capacidade do ser humano de tomar decisões”, afirma Joe Paton.

Metamersion - Healing Algorithms
créditos: MadreMedia

“É mais fácil e cria menos medo entender a tecnologia de forma recreativa”

“É uma maneira de pensar. Há drogas recreativas e há drogas que são medicinais e pode usar-se a mesma droga de uma maneira recreativa e de uma maneira terapêutica. Com os algoritmos é igual, no fundo, é usar a tecnologia de uma maneira controlada, mas sabendo que vai ter um impacto”, acrescenta Krakauer.

Outra experiência, bem mais prosaica, é a de experimentar menu e cocktail num bar que existe no espaço do Metamersion e cujas receitas foram desenhadas por Inteligência Artificial e interpretadas por dois chefs, João Augusto e Camacho. É uma brincadeira, mas também uma forma de ter uma experiência, sempre a experiência, com inteligência artificial em algo que faz parte do nosso quotidiano: comer e beber.

“Basicamente isto é uma piada. Utiliza os Large Language Models e a partir de uma base de dados que inclui linguagem de comida e bebida e dá para pedir aos algoritmos para criar receitas, claro com um chef envolvido. E isto cria uma oportunidade de conversar sobre o que estes algoritmos fazem”, conta Joe Paton. “Às vezes é mais fácil e cria menos medo entender a tecnologia de forma recreativa”, acrescenta John Krakauer.

O que Joe Paton também gostava era de desconstruir algumas visões mais “pop” do que significa a interseção da tecnologia com o cérebro. Recorda que em várias conversas que teve, e mesmo naquilo que é comunicado na comunicação social, Elon Musk e o projeto Neurolink surge muitas vezes como um expoente máximo desta nova fronteira entre a ciência e a tecnologia. “Isso é um canal muito estreito de comunicar com o cérebro. Nós temos interfaces muito ricos já dentro dos nossos sensores, nos olhos, nos ouvidos, no nosso sistema de motricidade”.

Ainda assim é mais comum imaginar cenários de ficção científica, como referem os dois investigadores, do que simplesmente pensar nos recursos que o ser humano tem por si próprio, nomeadamente no que respeita ao cérebro.

“Às vezes pensa-se que só é possível aumentar a capacidade do nosso sistema nervoso com comprimidos ou com algum tipo de dispositivo que toca no cérebro, mas a melhor maneira de aumentar o nosso cérebro é através de comportamento e experiência. Prefiro essa forma indireta do que a de Elon Musk. Não percebo porquê do sucesso, mas se calhar é porque vemos demasiados filmes”, sublinha Krakauer.

Metamersion - Healing Algorithms
créditos: MadreMedia

"Podemos aumentar o nosso cérebro com comprimidos mas a melhor maneira é com comportamentos”

Voltando às experiências e à forma como a dupla de investigadores as entende. Estamos no domínio do cérebro e do comportamento humano e numa espaço de grande latitude que vai desde os mais simples atos do dia a dia às situações em que há algum tipo de dano ou de perda de capacidade. Na investigação, procuram-se respostas. “Podemos aumentar o nosso cérebro com comprimidos mas a melhor maneira é com comportamentos”.

A tecnologia pode induzir comportamentos – por exemplo, com ambientes imersivos (o que são os videojogos senão isso?) – e as drogas psicadélicas, que começam progressivamente a ser introduzidas em várias áreas clínicas, podem fazer o mesmo.

“Os psicadélicos são drogas que criam experiências imersivas. É um comportamento na forma de um comprimido”, brinca Krakauer que está a iniciar investigação sobre ambientes imersivos e psicadélicos. “Os psicadélicos abrem uma janela para se chegar a um ambiente e esse ambiente pode ter um impacto maior porque o cérebro está pronto. O psicadélico é uma forma de abrir o cérebro para experienciar melhor”.

“A vida real já é imersiva e precisamos criar algo que vai além da vida”. Que é precisamente o conjunto de experiências que o Metamersion propõe.

As drogas psicadélicas não estão reservadas apenas a cenários terapêuticos; podem em si mesmo constituir uma espécie de acesso a uma outra camada de experiência. “Talvez vá ser uma mistura das duas coisas. É necessário ter experiências fora do normal depois de um dano para poder depois voltar ao normal. É algo que tentei fazer com os nossos jogos, explorar o mundo numa maneira diferente para que depois seja possível voltar ao estado em que se estava antes do dano”, refere John Krakauer.

Uma coisa que é muito falada neste projeto de terapêuticas digitais é sobre o conceito de normalidade. "O que é uma doença?", começa por questionar Joe Paton. "Uma pessoa que tem hipertensão arterial, que tem colesterol alto, que não dorme, está stressada ainda não teve um ataque cardíaco, mas o risco de ter é muito alto. O desfecho de ter um enfarte ainda não aconteceu, mas isso não significa que não precise fazer uma intervenção. A cultura da medicina é muito focada nos mecanismos finais, o que é que quebrou e resultou na admissão de um paciente no hospital e pensa muito menos na trajetória que causou. A maioria dos custos económicos e do sofrimento estão nas doenças crónicas e têm grandes fatores de comportamento e do ambiente”.

“Estamos demasiado focados na ideia de uma bala de prata que vai consertar de forma mágica o problema que causou a doença, mas a biologia não funciona assim”.

E não por acaso a mesa-redonda do terceiro dia do evento é sobre ética e inteligência artificial. Sim, andamos a ouvir falar deste binómio com frequência e teremos, provavelmente, que falar muito mais. Porque, nos diversos contextos, a “magia” da Inteligência Artificial depende de dados e os dados são, inevitavelmente, de alguém e da soma de muitos. No contexto da utilização de tecnologia para melhorar a condição de pessoas com algum tipo de dano ou de alteração da cognição passa-se o mesmo.

“O objetivo é utilizar o conhecimento de neurociência do comportamento em associação a ciência de dados e tecnologias imersivas para causar mudanças no comportamento das pessoas. É uma espécie de manipulação e leva a questões sobre autonomia do indivíduo. Temos enfrentar essas questões e chegar a uma maneira de pensar em que estejamos confortáveis como sociedade e como indivíduos”, assume Joe Paton.

“Os governos precisam espaços como estes para oferecer um tipo d medicina nova que o foco é em comportamento. O problema é que vão dizer: fica em casa com  com o teu telemóvel e toma este comprimido. A ética é não fazer isto”, junta Krakauer.